domingo, 28 de fevereiro de 2016

minha catequese


muita gente por aí
almeja cargos, poder e rendimentos...
para colocar as mãos sobre objetos
e apossar-se de pessoas, bens e imóveis
sonhando chegar ao topo de não sei onde e de lá de cima dizer
"ponham agora suas vistas em mim e reconheçam: eu também consegui!"

seus lânguidos tutores decaídos assopram como gárgulas em seus ouvidos:
"conseguirás o que queres".
e os amantes do ouro e do luxo, no topo de suas montanhas de mesquinharia olham para a cidade que inflama em fumaça densa e cinza, e pensam
"minha vontade capacitada manifesta em minhas conquistas como fiz minha vida valer a pena!"

tolos parasitas que envelhecem cegos e embrutecidos! pensam que cerrar os olhos fará desaparecer o abominável monstro que cresce vertiginosamente e toma forma colossal entre as células cancerígenas de uma sociedade corrompida.

uma dessas pequeninas células é minha própria mente.
como um imperfeito exemplar humano do século XXI
eu não busco por nada mais que aprender a pensar.
quero no decorrer do período entre-sonos que vivo acordado
não me pegar pensando em desistir,
para que eu não blasfeme e nem maldiga com minhas palavras a vida.
agradecendo por tudo o que eu já tenho, buscando forças para continuar
e coragem para fazer a única coisa que resta ainda a ser feita: ajudar ao próximo.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

algum dia meu cérebro vai ser desligado. (uma realização de clarividência e fé)

não vai mais coordenar autonomamente
a expansão dos pulmões, o pulsar do coração
e o fluxo sanguíneo com a energia
até os neurônios, que todos ativados sustentam
a consciência.

o eu-consciente morrerá
mas o espírito que fornece Ânimo ao corpo
vai lembrar da vida que teve como "Leonardo", filho de Silvia,

menino que viveu suas tardes de 22 anos
deitado no quintal dos fundos
e com o cachorro Marley no colo
esperando o café passar
reparava as nuvens brancas deslizando pelo céu,
enquanto sua tia trabalhadora dormia no sofá da sala de estar,
a velha e querida avó jantava na cozinha
e a tarde ia escurecendo ao som das risadas da criançada na rua.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Tradução: A globalização da ayahuasca: redução de danos ou maximização dos benefícios?

Resumo

Ayahuasca é um chá feito a partir de duas plantas nativas da Amazônia, Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis, as quais contêm, respectivamente, os psicoativos químicos alcalóides Harmanos e dimetil-triptamina. O chá tem sido usado por povos indígenas do Brasil, Equador e Peru para propósitos medicinais, espirituais e culturais desde a era pré-colombiana. No século XX, uso do chá da ayahuasca espalhou-se para além do seu habitat nativo e tem sido incorporado a práticas sincréticas adotadas por pessoas não-indígenas no contexto da modernidade ocidental. A globalização da ayahuasca nas últimas décadas levou a um número de casos judiciais em que a liberdade religiosa duela contra as leis nacionais de controle de entorpecentes. Esse artigo explora as implicações filosóficas e políticas do uso contemporâneo da ayahuasca. Ele aborda a construção social da ayahuasca como a) prática médica, b) um símbolo sagrado e c) uma "planta ensinadora". Questões a respeito da redução de danos no uso da ayahuasca são exploradas, mas também se explora o assunto a partir da perspectiva de "maximização de benefícios".

Palavras-chave: Ayahuasca, enteógeno, alucinógeno, liberdade religiosa, maximização de benefícios

Introdução


Em fevereiro de 2006 a Suprema Corte dos Estados Unidos determinou que a liberdade religiosa deve prevalecer sobre as leis de drogas dos EUA em relação ao uso cerimonial do ayahuasca. O caso do município de Gonzales contra O Centro Espírito Beneficiente União do Vegetal (UDV) abordou a questão de se a 'hoasca', que contém a substância dimetil-triptamina arquivada como ilegal no Cronograma I, poderia ser consumida legalmente como um ritual realizado pela Igreja  UDV, que tem como sede o Brasil.

Os casos norte-americanos de ayahuasca são apenas um dos vários casos similares na Austrália, Itália, Países Baixos e Espanha. A questão levantada por essas ações judiciais tratam não só de liberdade religiosa mas também da substância em questão: ayahuasca. Embora ainda obscuro no panteão de substância psicoativas, o uso da ayahuasca passou a se expandir para além da Amazônia.  Praticantes, legisladores e pesquisadores enfrentam ps desafios sensíveis de tratar sobre substâncias psicoativas que resistem às conceituação e caracterização tradicionais sobre o "abuso" de drogas ilegais. Nesse artigo, descreverei brevemente a ayahuasca e seus efeitos, bem como seus usos tradicional e contemporâneo. Em seguida eu exploro algumas das questões filosóficas e políticas levantadas pela "globalização" da ayahuasca, e o florescente interesse em todo o mundo acerca o uso do chá. Essa discussão leva à interrogação a respeito do controle sobre a ayahuasca e outras drogas a partir da lógica da "redução de dano" cujo déficit indiscutivelmente justifica um reenquadramento das discussões de políticas públicas em direção do conceito corolário de "maximização de benefícios".

Ayahuasca e seus efeitos

"Ayahuasca" é uma palavra vinda do idioma do povo Quechua, um grupo indígena da Amazônia equatoriana e peruana.  Traduzida como "vinho da alma", ayahuasca refere-se tanto ao Banisteriopsis caapi, um cipó encontrado em partes ocidentais da bacia amazônica, quanto ao cozimento preparado a partir de B. caapi adicionado da mistura de outras plantas. Uma das mais comuns adições ao chá da ayahuasca é a mistura da folha de Psychotria viridis, uma planta da família do café. Para evitar confusões, nesse artigo a planta será referida por seu nome botânico, B. caapi, e o chá comum preparado da combinação de B. caapi e P. viridis simplesmente como ayahuasca.

A sinergia entre os químicos psicoativos presentes no B. caapi e na  P. viridis é um notável caso de interação farmocinética. O cipó de B. caapi contém alcalóides Harmanos como harmina e tetra-hidroharmina, que são inibidores reversíveis e de curto efeito sobre monoamina oxidase (MAO). Os inibidores da monoamina oxidase pertencem à classe farmacológica de químicos antidepressivos cuja função é prevenir o colapso dos neurotransmissores de monoamina no cérebro.  P. viridis contém dimetiltriptamina, ou DMT, um potente alucinógeno que é ativado quando tomado pela veia, mas não quando ingerido oralmente. Isso porque o trato gastrointestinal também contém a enzima monoamina oxidase, que metaboliza o DMT muito antes de ele alcançar o cérebro. Entretanto, quando o DMT é ingerido conjuntamente com inibidores MAO - neste caso com o chá de ayahuasca - seu metabolismo imediato é atrasado, possibilitando assim que chegue ao cérebro. De uma perspectiva biomédica, então, os efeitos únicos da ayahuasca são função da combinação do DMT com os psicoativos potencializantes dos alcalóides Harmanos. Por outro lado, a explicação dos efeitos da ayahuasca levantada pelas tribos amazônicas refletem um paradigma envolvendo domínios e forças sobrenaturais, uma narrativa corroborada, senão validade, pela fenomenologia da experiência com ayahuasca.



O longo espectro das preparações farmacopeias ao longo dos diferentes povos da região amazônica indicam que seu uso longamente precede o contato com os europeus. A variedade de nomes dado ao cipó B. caapi, tais como yagé, caapi, natem, oni, nishi também sugere uso histórico generalizado. Entretanto, o legado do sistema colonial na América do Sul, como acontece em muitas outras partes do mundo, tem irremediavelmente impactado povos indígenas e suas tradições, incluindo cosmologias nas quais a ayahuasca tem ocupado papel central. É sabido que autoridades coloniais e religiosas geralmente condenavam a ayahuasca e o xamanismo uma prática diabólica e impediram seu uso. Ainda assim, o uso ritual da ayahuasca entre os povos indígenas da Amazônia continua presente até o dia de hoje, embora com diferentes graus de sincretismo cristão através da influência passada e presente dos missionários na região. Da mesma maneira, transferência inter-cultural do conhecimento curativo da ayahuasca enrtre povos indígenas e não-indígenas continua a acontecer, isso inclui vegetalistas mestiços que oferecem tratamentos de saúde alternativos a moradores residentes urbanos em países como o Peru.

As práticas amazônicas tradicionais no uso do ayahuasca - como acontece em relação ao próprio nome do chá - variam ao longo dos diferentes grupos culturais, embora haja um elemento comum, a saber, o contexto cerimonial necessário ao seu consumo. Rituais são conduzidos por um curador experiente, ou ayahuasqueiro, quem passou por muitos anos de treinamento para se tornar hábil em administrar a bebida. A preparação a este papel inclui longos períodos de isolamento, abstinência sexual e observação de estritos intérditos alimentares envolvendo certas comidas ou carnes. Alguns desses resguardos são aplicados também aos participantes que serão servidos da bebida durante o ritual, já que correm o risco de invocar forças espirituais indesejáveis se acontecer a inobservância dos interditos. Os rituais inevitavelmente incorporam entoadas ou cantorias de ícaros - sons especiais por intermédio dos quais a cura, divinização ou conexão com os espíritos pode ser efetuada - e geralmente incluem um acompanhamento de outras plantas sagradas, como o tabaco. Em diversos sentidos, ayahuasca é um enteógeno paradigmático, ou substância psicoativa usada para propósitos espirituais.

Os efeitos psicoativos da ayahuasca são similares aos de outras drogas da mesma classe farmacológica, como LSD  e psilocibina (nota do tradutor: cogumelos), embora sejam eles efeitos fenomenologicamente únicos. Os efeitos geralmente iniciam-se de 30 a 40 minutos após a ingestão, atingem seu pico em cerca de 2h e passam completamente em 6h. A ayahuasca produz estimulação cardiovascular moderada, incluindo aceleramento na taxa de batimentos cardíacos com como aumento da pressão sanguínea diastólica. Os usuarios reportam sensações de estimulação visual ou auditiva, sinestesia, introspecção psicológica e fortes sentimentos emocionais, variando de ocasional tristeza ou medo para euforia, iluminação e gratidão. O chá tem gosto amargo e não pode ser descrito como prazeroso de beber. Ânsias ou vomito não são incomuns durante a experiência de ayahuasca, um efeito que é geralmente considerado como limpeza espiritual ou corporal.

Os efeitos a longo prazo do uso da ayahuasca em bebedores regulares ainda não foram bem estudados por cientistas médicos, já que o chá foi mantido relativamente às escuras até as últimas décadas do século XX.  Uma investigação preliminar em pequena escala nos membros das igrejas brasileiras de ayahuasca sugere que o chá não é fisiológica ou psicologicamente danoso quando usado em contextos cerimoniais. Shanon (2002) analisou a fenomenologia da experiência com ayahuasca a partir de uma perspectiva da psicologia cognitiva, trabalho que sugere muitos caminhos futuros para a pesquisa psicológica. Evidencias para a dependência de ayahuasca estão faltando; com efeito, muitos tem sugerido que o uso cerimonial da ayahuasca pode ter aplicações terapêuticas como um adjunto ao tratamento para vícios.

Uso contemporâneo da ayahuasca

Além do uso contínuo da ayahuasca entre os habitantes indígenas e mestiços tradicionais da Amazônia, outros tipos de práticas ayahuasqueiras têm surgido nos tempos modernos. A inevitável miscigenação entre a cultura indígena e a cultura dominadora na América do Sul ao longo do tempo resultou em usos híbridos da ayahuasca que continuam a se desenvolver através das forças da globalização. O Brasil tem sido fonte de vários movimento religiosos sincréticos que combinam elementos do uso indígena da ayahuasca, espiritualismo africano e liturgia cristã. Esses movimentos incluem o Santo Daime, fundado nos anos 1930 por Raimundo Irineu Serra; a União do Vegetal, fundada em 1961 por José Gabriel da Costa, e o Barquinha, um grupo que se separou do Santo Daime em 1945 (MacRae, 2004). Assim como as práticas tradigionais de ayahuasca indígena, esses grupos modernos incorporam um forte contexto ritual em seus usos da ayahuasca.  Perto do fim do século XX, seções do Santo Daime e da União do Vegetal começaram a ser estabelecidas para além das fronteiras brasileiras, em países como Austrália, Canadá, França, Alemanha, Japão, Países Baixos, Espanha e Estados Unidos.

O Santo Daime é a mais antiga e internacionalmente ativa igreja sincrética de ayahuasca no Brasil. Sua origem remonta aos anos 1920. quando seu fundador - um seringueiro brasileiro de nome Raimundo Irineu Serra ou Mestre Irineu - descobriu o chá através do contato com povos indígenas das remotas florestas nas fronteiras do Estado do Acre. O Santo Daime permaneceu obscuro e geograficamente isolado na Amazônia rural por muitas década. Entretanto, quando Mestre Irineu morreu em 1971, a igreja foi dividida em diversas facçoes, uma das quais - o Centro Eclético da Luz Universal que Flui  - ou CELFURIS - tem sido central na subsequente expansão do Santo Daime (MacRae, 1998). Após um período de reveses, em que o status da ayahuasca ficou incerto, o governo brasileiro em 1991 determinou que os benefícios do uso ritual prevalecem  sobre os potenciais riscos, e reconheceu os direitos ao uso sagrado do chá por grupos como o Santo Daime e a União do Vegetal.

Como resultado da expansão em países despreparados para os dilemas políticos colocados pelo uso de substâncias enteogênica não-indígena, o Santo Daime e seus partidários tem enfrentado ações legais em diferentes países durante a última década, incluindo Países Baixos, Espanha e Itália. Estes casos resumem a luta entre grupos que buscam a legitimação do uso sacramental da ayahuasca e os governos em estados democráticos liberais se esforçando para sustentar tanto a liberdade religiosa e as leis punitivas de drogas. 

Construindo ayahuasca - ontologia

Um dos dilemas apresentados pela ayahuasca às políticas contemporâneas de drogas é ontológico. Ontologia é o ramo da metafísica que envolve a análise filosófica da existência e categorização da realidade. As modernas leis de drogas e políticas são ontologicamente baseadas em uma visão mecanizada do universo, já que são extensões sócio-políticas dos projetos modernistas da ciência materialista. De acordo com eta visão, as drogas e seus efeitos podem ser totalmente explicados pelas ciências da bioquímica e da psicofarmacologia. Reinarman e Levine (1977) identificam esta tendência como determinismo farmacológico, a crença de que o efeito de uma droga é causada unicamente por suas propriedades farmacológicas, independentemente das idiossincrasias psicológicas ou do contexto social. Entretanto, a perspectiva construtivista reconhece que para além disso as drogas são um poderoso constructo social. Os efeitos que produzem na consciência e comportamento humanos não são decorrente apenas de sua bioquímica, mas também do rico significado social e simbólico que recebem.

De uma perspectiva construtivista, as drogas não podem ser completamente entendidas meramente pela análise de suas estruturas químicas e pela maneira como elas interagem com os sistemas neurofisiológicos.  É necessário considerar também os significados subjacentes ao seu crescimento, produção, preparação, consumo e categorização, todos os quais podem variar culturalmente através do tempo. Por exemplo, o conceito de "medicina" é uma construção cultural que nas sociedades modernas do Ocidente recebe significado através das poderosas instituições e sistemas de praticantes médicos. Substâncias específicas são considerados medicamentos não pelas propriedades inerentes a elas, mas em virtude de serem abençoados como tal pelos membros de poderosas classes profissionais (ou seja, médicos e farmacêuticos). A dietilamida do ácido lisérgico (LSD) teve essa bênção entre os anos 1950 e 1960, quando foi considerada um promissor medicamento psiquiátrico, mas foi rapidamente deslegitimada quando o uso não-médico tornou-se manchete nos jornais e assunto de pânico moral. O álcool também uma vez foi considerado como um remédio, embora hoje na maioria das sociedades seu uso seja uma substância recreacional (ou algumas vezes cerimonial), exceto em alguns estados muçulmanos, onde é uma perigosa droga proibida. Com efeito, a frase comum "álcool e drogas" trai um compromisso ontológico implícito persistente à noção de que o álcool é algo que não seja uma droga.


Você é do tamanho do seu pensamento. A mente é fragmento do Pensamento infinito de Deus. Conectar-se com Deus é ampliar o pensamento a níveis extra-cósmicos.
A ayahuasca desafia quintessencialmente a categorização de ser uma mera "droga" - ou, em terminologia dos Instituto Nacional dos EUA sobre Abuso de Drogas, uma "droga de abuso". Com efeito, a ayahuasca tem sido culturalmente construído por seus vários usos médicos, sagrados e uma "planta ensinadora". Na Amazônia, a ayahuasca é considerada uma planta mestre, uma ferramente de diagnóstico e força curadora. Juntamente com o tabaco, é uma das mais importantes substância nas farmacopeias dos curadores tradicionais amazônicos.  Embora a ayahuasca tenha também vindo a ser construída como sagrada pelos grupos religiosos Santo Daime e União do Vegetal. Para seus partidários, o chá é considerado um presente divino que permite contato com forças e energias das quais o ser humano está apartado na vida cotidiana. A a ayahuasca é quintessencialmente uma "planta ensinadora", um mecanismo divinizante e natural que pode prover conhecimento esotérico aos adeptos hábeis em negociar seus notáveis efeitos. Estas conceituações representam um desafio para as políticas modernas ocidentais de drogas e as leis que têm como premissa uma ontologia  racionalista e positivista que constrói substâncias psicoativas essencialmente como produtos químicos, e seus efeitos como simplesmente mecânicos.

Um debate que isso levante é o problema da apropriação cultural. Eu seria negligente em não reconhecer humildemente que a ayahuasca é um exemplar do conhecimento indígena, uma tecnologia xamânica ou ferramente cognitiva que há muito tempo tem sido o que pode ser descrito como propriedade intelectual dos povos nativos da Amazônia. Por conseguinte, a sua mercantilização, comercialização e secularização são tendências preocupantes.  A questão da propriedade intelectual veio à atenção pública em 1990 nquando representantes das tribos amazônicas formalmente protestaram contra o escritório de patentes dos EUA, que tinha ingenuamente concedido uma patente sobre a  ayahuasca a uma empreendedora farmacêutica americana - a patente foi posteriormente anulada. No entanto, descartar o crescimento do interesse na ayahuasca como mera apropriação é um pouco simplista.. A gênese das igrejas brasileiras de ayahuasca - que são em vários aspectos os pioneiros da globalização da ayahuasca - foi um subproduto de fertilização intercultura (MacRae, 2004). Há também razão para crer que na era das enciclopedias, compartilhamento de arquivos e o movimento de fonte livre, o conceito de propriedade intelectual está rapidamente tornando-se um pitoresco anacronismo, um desenvolvimento que preocupa a corporações e acadêmicos tanto quanto a povos indígenas.

Ao contrário de há algumas décadas, entretanto, o espectro mental coletivo do início do século XXI está sendo expandido e reformado por tecnologias revolucionárias de informação e comunicação. Assim, à medida que a ayahuasca está sendo diversa e simultaneamente construída culturalmente no mundo (pós)moderno, forças singulares estão em jogo. Por exemplo, autoridades cujos interesses possam ser servidos pela disseminação de inverdades ou representações depreciativas sobre a ayahuasca - como o foram por incontáveis vezes no passado, em relação a outras drogas ilegais - são duramente pressionadas pelo desafiar imposto pelo tamanho e alcance da informação factual facilmente disponível ao público leigo. O uso da internet pelos aficionados pela ayahuasca permite uma diversidade de pensamento e expressões sobre o chá e seus efeitos, impondo significantes desafios aos criadores de políticas.

Em respeito ao uso de substância psicoativas, duas dominantes construções do problema são identificadas por Marlatt (1996): uso de drogas como uma questão moral e uso de drogas como uma doença. A primeira estabelece certas drogas como intrinsecamente maléficas, atribuindo a elas agência e capacidade de sobrepor a livre vontade humano. Nesta metáfora do"agente maléfico" está implícita a noção de que o usuário de droga é imoral e deve ser punido; é essa metáfora generalizante que sustenta o regime global de proibição das drogas. A segunda metáfora dominante considera as substâncias psicoativas como patógenos. Esta tem se tornado a metáfora predominante no campo da saúde pública, onde prevalece os discursos sobre tratamento e prevenção. Com os "patógenos" como metáfora, o uso de drogas é considerado uma doença contra a qual a juventude deve ser inoculada e pela qual as pessoas devem ser tratadas.

As duas metáforas dominantes sustentando a atual política de drogas - "agentes maléficos" e "patógenos" - não são particularmente úteis para enquadrar o uso das substâncias enteogênicas. A longa tradição do uso médico, sagrado e mestre da ayahuasca impõe um desafio a categorizações metafóricas tão simplísticas. Ao invés disso, eu sugiro um deslocamento para a perspectiva das drogas como "ferramentas", que oferece mais nuances à maneira de conceber os riscos e benefícios demonstrados pelas práticas da ayahuasca. Ao invés de essencializar as substância psicoativas como inerentemente perigosas, considerá-las como ferramentas - técnicas antigas para alteração da consciência - permite uma avaliação realista dos seus potenciais benefícios e prejuízos, de acordo com o contexto de quem usa, e para que propósitos. Entretanto, ambos o uso tradicional e contemporânea das práticas cerimonias da ayahusca sugere benefícios que a metáfora da ferramente consegue melhor contabilizar em termos da consideração das políticas.

A filosofia de redução de danos é também brevemente iluminada por um deslocamento ao princípio geradora das drogas como ferramentas. No que diz respeito aos elaboradores de política ou praticantes que enfatizam o comportamento de riscos potenciais, a política da redução de dano é justificada. Entretanto, a metáfora da ferramenta para as substâncias psicoativas garante o corolário da noção de "maximização de benefícios", o outro lado da moeda redução de danos. Ao invés de abordar a política de drogas a partir da perspectiva do déficit - implicado pelas metáforas dos "agentes malevolentes" e "patógenos" - a metáfora da ferramenta abre avenidas discursivas para políticas realistas de consideração dos benefícios bem como dos danos. Entretanto, a redução de dano tem sido o conceito valorizado, estimulando abordagens baseadas na abstinência ao uso de drogas não-médicas. O deslocando das políticas para uma perspectiva de saúde pública mais humana, evidencia as suas limitações diante da metáfora geradora de "droga como ferramenta". 

A tradicional bordagem a partir da redução dos danos sobre a ayahuasca enfatizaria tipos similares de precauções quanto ao LSD, psilocibina o outras drogas psicodélicas. Essas incluem saber e confiar na fonte da substância, controlar a mentalidade e o cenário (isto é, preparação psicológica e arredores físicos), tendo uma "babá" que pode estar consciente da segurança, não dirigir ou participar de outras atividades arriscadas durante os efeitos, e desencorajamento de uso por indivíduos com tendências a distúrbios psiquiátricos. Incluiriam também precauções epescíficas quanto à dieta e combinação de medicamentos. Os efeitos inibidores MAO dos alcalóides Harmanos no chá de ayahuasca justificam restrições dietéticas para alimentos que contêm o composto monoamina tiramina. Tiramina ingerida em combinação com drogas inibidoras MAO pode resultar em crises de hipertensão.  tiramina composto monoamina. Da mesma forma, os inibidores da recaptação da serotonina podem ter interações potencialmente prejudiciais com inibidores MAO, então as pessoas que tomam estes tipos de medicamentos são aconselhadas a evitar a ayahuasca. Interessantemente, práticas indígenas de ayahuasca na Amazônia também incorporam universalmente dietas estritas e protocolos comportamentais.

Um benefício da abordagem de maximização aplicada ao uso da ayahuasca, por contraste, iria envolver a criação de políticas para prover acesso legitimado aos cenários cerimoniais. Esse processo incluiria considerar uma variedade de instrumentos políticos à disposição das autoridades de saúde pública para assegurar a minimização dos riscos. Tal abordagem pode começar com a formalização dos protocolos de redução de dano listados acima. Poderia também incluir adoção de disposições que assegurassem que os ayahuasqueiros ou líderes espirituais fossem habilidoses e competentes em liderar rituais (quer  através da auto-regulamentação ou certificação), inspecionando e licenciando instalações ou centros onde cerimônias de ayahuasca fossem conduzidas, e regulação da produção do chá para garantir que ele esteja em conformidade com pureza ou potência especificadas (como é atualmente realizado em alguns países com outros produtos naturais de saúde). Uma abordagem de maximização de benefícios certamente implicaria mais investigação sobre ambos os efeitos a curto e longo prazo da ayahuasca e as práticas sociais em que é usado, que por sua vez podem fornecer mais orientação política.

Conclusão

O crescente interesse no uso da ayahuasca por povos modernos não-indígenas coloca desafios conceituais significantes quanto às drogas e política de drogas. A ayahuasca tem rica história de uso como medicamente, sacramento e planta ensinadora, construções culturais que não encaixam-se prontamente nos quadros contemporâneos da política de drogas. A globalização da ahyahuasca na última parte do século XX e começo do século XXI é um fenômeno que demanda reconsideração de algumas das suposições metafísicas e sociológicas da contemporânea política de drogas. Vários casos legais já têm aberto as portas a uma garantia da liberdade religiosa ao uso cerimonial da ayahuasca. Por conseguinte, os criadores de políticas estariam bem aconselhados a considerar outras ferramentas políticas além da criminalização para balancear os interesses conflitantes da justiça criminal, saúde pública e direitos humanos. Em relação à teoria de redução de danos, o uso contemporâneo da ayahuasca deu peso ao corolário da noção de maximização de benefícios.

Kenneth W. Tupper - Departamento de Estudos Educacionais, Universidade da Colúmbia Britânica, BC, Canadá. 

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Resenha Dr. Núbor Orlando Facure - O cérebro e a mente. Uma conexão espiritual.

Nubor Orlando Facure. O Cérebro e a Mente. Uma conexão espiritual. São Paulo, Editora Fé, 2003.

Núbor Orlando Facure é médico com especialização em Neurologia, sendo o diretor do Instituto do Cérebro e Mente em Campinas. Pesquisador e expositor espírita, Dr. Nubor Facure desenvolveu pesquisas aliando Medicina ao conhecimento espírita. Em 1990 institucionalizou o primeiro curso de pós-graduação com enfoque espírita no Departamento de Neurologia da Unicamp. Dentre suas publicações estão títulos tais como Muito Além dos Neurônios, A Ciência da Alma – de Mesmer a Kardec  e Mediunidade, um ensaio clínico.

Sumário
A evolução do Cérebro, p. 17.
O Mapa do Desenvolvimento. Os Sistemas, p. 46.
O mapa do Desenvolvimento. As Funções, p. 49.
Reconhecendo a Mente, p. 67.
O Inconsciente Neurológico, p. 74.
O Cérebro e a Mediunidade, p. 82.
A Neurologia do Bem-Estar, p. 89.
Revelações da Alma, p. 98.
Psicognosia. O Reconhecimento da Alma, p. 107.
O Homem Mediúnico. Uma perspectiva para o Ser Humano no Futuro, p. 113.
Ciência e Espiritualidade, p. 135.
Doença Espiritual, p. 139.
Eventos Históricos na Pesquisa do Cérebro e da Mente, p. 153.

O objetivo do doutor Nubor neste livro é argumentar como a fenomenologia mediúnica que a doutrina espírita tem o privilégio de conseguir esclarecer em seus pormenores revela caminhos da espiritualidade que quais enriqueceriam a Medicina se esta tentasse compreender melhor a natureza de tais fenômenos. Para tanto questiona uma certa ciência materialista excessivamente positivista que resume a explicação do Corpo à fisiologia dos fenômenos orgânicos. Assim, por exemplo: a respiração equivale à troca de gases, a digestão à fermentação de substâncias, a vida ao metabolismo das células, o movimento à contração de músculos e as sensações aos impulsos nervosos que atingem o cérebro. Para tal vertente remanescente da Ciência Moderna do século XVII "Os neurônios com seu intrincado arranjo em redes neurais seriam argumentos suficientes para justificar todas as nossas aptidões que, em conjunto, constituiriam nossa mente." p. 66. Os conceitos agenciados para explicar a atividade dos neurônios neste paradigma seriam os da termodinâmica: a energia é trazida por substâncias que chegam até o cérebro pela circulação sanguínea: sangue - energia - neurônios - impulsos elétricos - trabalho mecânico de contração. Entretanto, se pensamos com mais ou menos vigor em vitórias ou conquistas o gasto de energia não é alterado. 

Nubor começa a desconstruir tal paradigma a partir das reviravoltas epistemológicas protagonizadas pela Física no século XX. Se o que se sabe sobre os átomos é o que se consegue registrar como ondas ou pacotes de energia utilizando-se de instrumentos que necessariamente distorcem o fenômeno a ser mensurado (princípio da incerteza de Heisenberg: se focamos em medir a posição do elétron necessariamente a precisão da medida da velocidade será afetada) então o paradigma de Galileu que postula para a ciência o estudo só daquilo que se possa ver, verbalizar, calcular, experimentar e prever mostra-se superado pelas inovações ontológicas da Filosofia e da Física Quântica. Segundo Nubor a consequência racional destas considerações é que "deve haver no Universo uma outra ordem de manifestações que nossos sentidos não conseguem registrar [...] pois a extensão dos fenômenos é limitada pela nossa capacidade mental de registrá-los. A limitação é nossa, não dos fenômenos." p. 68.

Percebam como no decorrer de todo o livro o cirurgião Dr. Nubor Orlando Facure demonstra conhecimento profundo da anatomia e fisiologia do cérebro bem como da dimensão espiritual, citando autores como Allan Kardec e Xico Xavier. Por motivos de texto muito extenso tive que me remeter a exemplos anatômicos e fisiológicos com economia, buscando no entanto deixar claro aos leitores vindos da Medicina como é bem fundamentado o ecletismo intelectual do autor.

O autor diferencia Religião de Espiritualidade. As religiões prescrevem crenças, dogmas, rituais, práticas litúrgicas e compromissos sociais com a instituição, onde geralmente é estabelecido um sistema hierárquico que distribui poderes em nome de Deus. Neste sentido a religião explora a espiritualidade que é intrínseca ao ser-humano. Jesus dizia "sois deuses".  O que há de comum entre Espiritualidade e Religião é que esta compartilha a relação transcendente do homem com Deus (uma forma suprema ou energia universal). A Religião entretanto pratica a veneração por aquilo que é tido como sagrado e geralmente nomeia falsos profetas que encabeçam guerras enquanto as manifestações fundamentalistas prosperam e a iluminação espiritual do homem mantém-se ainda distante no horizonte.

A vivência espiritual, por outro lado, é individual, subjetiva, particular e nem sempre pode ser verbalizada as outras pessoas. Ela deve ser vista como um atributo do indivíduo dentro de um conceito complexo e multidimensional. Para uns a espiritualidade manifesta-se ou é vivenciada em um momento de ganhos materiais prazerosos e tão simples como pisar na relva descalço ou no caminhar solitário pela noite. Para outros, será um momento de contemplação, de meditação, uma reflexão profunda sobre o sentido da vida, uma sensação de íntima conexão com o que pensa amar ou um contato psíquico com seres espirituais.

Os elementos de espiritualidade correspondem à prática, crença  e experiência espiritual. Prática consiste na meditação, contemplação ou culto religioso, e pode ser informal ou institucional. A crença consiste nas opiniões do indivíduo sobre a existência de Deus, na imortalidade da Alma, na possibilidade de vida após a morte e na existência de mundos espirituais para além do nosso conhecimento sensorial e intelectual. Experiência consiste no diálogo interior com Deus, o contato pessoal com o transcendente e sagrado, que pode acontecer durante experiências de quase morte, quando ocorre projeção da consciência para fora do corpo físico por outras dimensões.

Na intimidade das regiões mais basais do cérebro humano existe o Hipotálamo, que centraliza o comando das reações nervosas dos sistemas Simpático e Parassimpático. As reações de alarme correspondem à liberação generalizada de adrenalina, oferecendo ao organismo força e eficiência. São mediadas pelo sistema Simpático quando o indivíduo em situação de perigo precisa garantir força aos músculos, mais intenso fluxo de circulação de sangue, mais absorção de oxigênio, dilatação da pupila para ampliar a visão,etc. As reações de bem-estar têm atuação dos nervos Parassimpáticos e utilizam a acetilcolina como neurotransmissor de suas reações químicas para fazer o coração bater mais tranquilamente, reduzir a abertura das pupilas, causar o relaxamento dos músculos esmaecimento da atenção e da consciência. Nestas reações de bem-estar estão o tálamo e a glândula pineal como repertório anatômico das reações. O tálamo centraliza nossas percepções sensitivas. A meditação, portanto, deve atuar através do tálamo para nos desligar de todas as sensações hostis que nos provoca o ambiente exterior. A pineal,por sua vez, libera melatonina, que tem efeito relaxante sobre os músculos e tranquilizante sobre o sistema nervoso, produzindo sensação de êxtase. O grande desgaste experimentado pelo homem moderno ao invés de ser mascarado com medicamentos tranquilizantes do sistema nervoso "deverá ser corrigido com uma mudança radical no comportamento humano. As vias de acesso ao bem-estar estão claramente disponíveis em nosso cérebro." p. 94

Foi a partir de 1869 que o antropólogo e cirurgião francês Paul Brocá confirmou a especialização das áreas cerebrais no desempenho de cada uma de suas funções. Criou-se, assim, um novo campo de estudo, no qual se via, no cérebro, a justificativa de todos nossos movimentos, percepções, desempenhos, reações reflexas e até mesmo as aptidões psicológicas e as emoções. Firmou-se o conceito de que a mente seria mero produto imanente da complexa atividade cerebral. O dualismo Corpo-Alma deveria subjugar-se ao conceito moderno de interação cérebro-mente, no qual ambos seriam indissociáveis.

A Neurologia tradicional, segundo Nubor, é especializada em captar a expressão dos efeitos psíquicos, ou seja, identificar as distintas áreas do cérebro ativadas para dar conta dos diferentes estímulos.  Assim, o lobo frontal concentra as funções motoras e os movimentos voluntários; o lobo parietal é responsável pelo reconhecimento visual e tátil bem como pela integração dos diferentes sentidos. Tal reconhecimento processado no lobo parietal se fundamenta em conceitos de identificação que reúnem uma série de propriedades de um objeto e não apenas uma propriedade física em particular que nos estimulou por determinada e única via sensitiva; o lobo temporal está relacionado com a capacidade auditiva, com a aquisição de memórias, com certas percepções visuais, com a categorização de objetos, com a afetividade e com o comportamento sexual; o lobo occipital corresponde à visão e capacidade de enxergar no ambiente as cores, objetos, desenhos e palavras. 

É sabido que lesões ou malformações nestas áreas tendem a desencadear deficiências facilmente associáveis às áreas cerebrais. Assim, a lesão no lobo frontal é caracterizada por produzir dificuldade de sequenciamento nas ações e incapacidade de a pessoa perceber que errou no desempenho de tarefas.  Lesões no lobo parietal causam agnosia, quando o cérebro é incapaz de identificar o objeto visto ou tocado, bem como a apraxia causada por lesões que impedem o indivíduo de manipular objetos (por exemplo, fazer dobraduras de papel). Danos no lobo temporal provocam aumento ou decréscimo no desempenho sexual, incapacidade seletiva para certas coisas que se vê ou escuta, e comprometimento da memória de curto prazo bem como interferência na memória de longa duração. Já as lesões no lobo occipital causam perda da visão em uma área do campo visual, passando o indivíduo a enxergar apenas em um dos seus lados, além de estar sujeito a alucinações ou ilusões visuais.

Entretanto, para o neurologista Nubor Orlando Facure o conhecimento da fisiologia e das áreas do cérebro envolvidas nas aptidões não esgota o que há para saber sobre a mente. Esta visão localizacionista do cérebro acredita nos neurônios como elemento-chave explicativo da capacidade do homem de pensar. Este paradigma de estudo é suficiente para captar a expressão dos efeitos (áreas cerebrais ativadas) mas não as causas fundamentais dos fenômenos. O objetivo desta argumentação é afastar o entendimento do corpo de paradigmas mecanizados, ou seja, que se abandone a metáfora do corpo como relógio cujo mecanismo de engrenagens deve ser avaliado pela balança, pelo microscópio e pelo termômetro.

A Inteligência Artificial é um fato histórico que favorece o argumento de Nubor. Se os softwares são programas complexos elaborados a partir de uma linguagem limitada a 0 e 1, então necessariamente a rés cogitans de Descartes excede as limitações do rés extensa. O pensamento é livre e sua existência não pode ser questionada. Ao afirmar "penso, logo existo" então estabelece um princípio dualista, ao consolidar-se um mundo espiritual, independente do mundo físico que o materializa. Se por um lado o localizacionismo desde 1869 favoreceu o estudo físico, a  Doutrina Espírita de Allan Kardec iluminou a dimensão espiritual do ser-humano.

O estudo do cérebro e mente não pode se comprometer por omissão deixando de acrescentar um certo grupo de atividades que consiste em fenômenos mentais, comprovados experimentalmente, mas que ainda permanecem à margem dos estudos clássicos da neurologia. Entre eles estão a visão e audição a distância, a premonição (antecipação de acontecimentos futuros); a xenoglossia (capacidade de falar em uma língua desconhecida pela pessoa); a psicometria (leitura mediúna, com as mãos, de qualquer objeto, revelando seus antigos proprietários); e o desdobramento do corpo espiritual. Para Nubor, estamos presos à realidade física que nos limita e portanto "não poderemos jamais explicar a fisiologia dessas aptidões. Todas elas estão ligadas a uma capacidade da Alma que utiliza também o cérebro, mas transcende sua fisiologia." p. 97

A chave para estes fenômenos reside no Espírito e na consideração da mente como Alma, ou seja, elemento que sobrevive independentemente do corpo como individualidade personificada. Nesta perspectiva a mente é princípio gerador e impulsionador das faculdades, atuando como causa das funções do cérebro e não como efeito do seu funcionamento coordenado e orgânico. Nubor conceitua a mente como energia primitiva fragmentária do pensamento de Deus e provedora da Força Espiritual da Alma como alimento do pensamento, uma espécie de Energia psíquica impossível ser contabilizada em termos termodinâmicos.

No século XVIII o famoso magnetizador Frans Anton Mesmer deixa de lado a anatomia e fisiologia para experimentar o elemento imaterial do magnetismo e da sugestão como produtores de transe hipnótico e estado de sonambulismo. Mesmer defendeu em sua tese de doutorado a existência de um elemento imaterial de fluido magnético possível de ser transferido de uma pessoa para outra através da sugestão.  É sabido que no estado hipnótico as faculdades psíquicas do paciente podem ser exaltadas e o indivíduo demonstra aptidões que não tem quando desperto.  Além disso, suas funções fisiológicas são modificadas a tal ponto que se tem a impressão de se tratar de um corpo anatomicamente diferente de seu corpo físico. A hipnose como técnica terapêutica voltada para a mente imaterial revelou-se útil no tratamento de pacientes portadores de histeria. Nestas práticas o postulado fundamental é a atuação (não domínio) de um indivíduo sobre o outro através da mente. Durante o desprendimento sonambúlico produz-se modificações caprichosas na fisiologia do sistema nervoso. O paciente pode confirmar que está vendo letras escritas num papel atrás de suas costas. Esse quadro atípico de comprometimento sensitivo não ocorre nas patologias clássicas do cérebro físico. É o corpo mental que nos revela assim sua fisiologia e seus transtornos.

A partir de Mesmer e seus seguidores estava fortalecida a possibilidade de estudar as manifestações da alma do ser humano. O nome de Sigmund Freud ganhou notoriedade ao considerar uma estrutura para a mente psíquica independente da mente fisiológica: o Id, o Ego e Superego constroem nosso aparelho psíquico. Segundo Nubor a inovação de Freud consiste em  "Seu diálogo terapêutico baseado na livre associação, na análise dos sonhos, no significado dos atos falhos e na regressão aos fatos e conflitos da infância. Freud põe a descoberto a grande realidade do inconsciente, no qual cada um de nós faz submergir os desejos não manifestos, reprimidos pela censura do consciente." p. 124

Alguns seres humanos são capazes de entrar em sintonia com os espíritos desencarnados que têm intencionalidade e vontade. Através do transe sonambúlico da hipnosemeditação auto-induzida ou em sonho, estados alterados de consciência em que a pessoa funciona em diferente frequência mental (como um botão que sintoniza a frequência do rádio) o perispírito (energia de criação divina)  desprende-se do corpo, permanecendo ligado a ele por um cordão fluídico,  e paira no mundo espiritual onde passa a se relacionar com os espíritos.´



No que se refere ao trânsito em domínios espirituais, cada um de nós só pode circular na faixa vibratória que lhe é própria, não tendo acesso aos níveis superiores, onde habitam espíritos em grau de evolução superior ao nosso. Ensinam os espíritos que para eles o tempo é apenas o presente. Aqueles que desfrutam de condições que sua evolução espiritual permite podem circular pelo nosso passado ou futuro sem dificuldade. Os Espíritos superiores são como a pessoa que se situa no topo de um prédio e vê com amplitude as pessoas nas ruas. O mundo espiritual deve ser considerado em diversos planos de realidade. Para Nubor essa imagem "pode ter alguma coisa a ver com os Universos paralelos que a Física começa a descortinar." p. 104

No momento do sono, a Alma se afasta do corpo e, cada um de nós, passa a vivenciar o mundo espiritual com mais liberdade. Estaremos sempre presos aos níveis vibratórios que nossa evolução espiritual nos permite circular. Sendo o mundo espiritual habitado pelos Espíritos desencarnados, não é de se estranhar que eles possam, de alguma forma, participar conosco da experiência vivida durante o sono. Podemos receber sugestões com boas ou más influências.

De natureza semimaterial o perispírito acompanha as aparências do corpo físico e é extremamente sensível às modificações que a mente pode lhe impor. O perispírito assume a forma que o Pensamento lhe impuser, isto é, as imagens mentais e ideogramas de bem e mal fixam-se na mente. Segundo Nubor os fluidos espirituais em nossa volta "imprimem as formas que nossos pensamentos constroem por força dos desejos que cultivamos com intensidade." p. 131

Num questionário dirigido aos Espíritos, Allan Kardec recebeu as revelações de uma doutrina que posicionava definitivamente a origem da vida, a natureza do ser humano, o significado do seu sofrimento e o destino que o futuro lhes reserva. Do ponto de vista Espiritual, somos Espíritos Imortais que ocupam corpo físico para progresso e desenvolvimento espiritual. A codificação do Espiritismo ensina  viver significa estar sujeito à evolução,ou seja, neste e noutros mundos o Princípio espiritual estagia no mineral, na planta e nos animais. Enquanto Darwin demonstra a evolução biológica a partir de uma origem comum e seleção das características positivas pelo meio ambiente, Kardec demonstra o caminho do Espírito através da intercomunicação entre os diferentes planos do Universo.

A constatação do fenômeno espiritual pelos paradigmas do Kardecismo como uma nova ciência identifica o Homem mediúnico como aquele capaz de dar-se conta de que sua experiência psíquica ultrapassa a realidade limitada pela experiência que os sentidos o permitem perceber. O homem mediúnico difere do homem comum pois este tem sentidos grosseiros que não o permitem perceber o mundo espiritual em sua plenitude. Tornar-se um médium inclui a orquestração de uma parceria entre pessoa e espírito cujo resultado é a transmissão dos pensamentos e ideias do espírito através do médium, que deve afastar  parcialmente seu perispírito do seu corpo para permitir maior aproximação do espírito. Nesse processo a comunicação é sempre poluída por ruído decorrente do próprio cérebro do médium,  o que causa interferência na tradução da mensagem original. Tal interferência deve ser vencida pelo treinamento e capacitação mediúnico. A mediunidade acontece quando as portas da morte não isolam mais os mundos e há comunicação corriqueira entre nós e o outro lado da vida.

A Doutrina Espírita explica que os Espíritos participam de nossos mais íntimos pensamentos e, com frequência, envolvem-se em nossos acertos e erros durante toda nossa vida. Através da aptidão da mediunidade determinadas pessoas têm a capacidade de entrar em sintonia com os espíritos desencarnados e receber ostensivamente sua comunicação,  Nubor afirma que com a sensibilidade do Homem mediúnico "poderemos ampliar os horizontes da humanidade, com maior participação no desenvolvimento da vida neste Planeta."

Com as inovações da Doutrina Espírita Nubor afirma que "A Anatomia tem que acrescentar agora o corpo espiritual e suas relações com o mundo espiritual. A fisiologia é forçada a entender o Espírito como agente direto dos fenômenos vitais e a patologia tem que considerar as construções que o pensamento materializa no campo de ação do corpo espiritual e seus desdobramentos na auto-obsessão."  p. 131

Freud, ao desbravar o inconsciente independente de bases anatômicas expôs o universo interior da nossa mente.Parece até um contra-senso imaginar que a psicanálise tenha estudado tão profundamente as estruturas da mente humana, sem se aperceber de que esse conjunto de elementos pudesse compor uma individualidade personificada, que sobrevive independentemente do corpo físico. O reconhecimento de que a Alma é imortal possibilita a realização da psicognosia, isto é, um reconhecimento da nossa alma em que se evidencia em nossa memória espiritual habilidades, tendências, virtudes e aptidões não aprendidos na vida atual. Nossa mente é expressão de nossa Alma imortal cujo espírito corporifica-se embora não se mostre por inteiro. Por ser imortal a Alma completa em cada vida atual um mosaico das múltiplas personalidades que representou nos palcos da vida através das reencarnações. 

Nubor adiciona ao final desta convincente argumentação o papel do espiritismo, que é o de ampliar diagnósticos. Busca-se a cura pelo espiritismo através da reeducação espiritual que estabelece a renovação e crescimento pessoal a partir das doenças. O fator espiritual aparece como causa da doença ou como fator benéfico para a cura.

Com uma erudição despretensiosa e fácil de ser compreendida por leigos Núbor nota que uma neuropsicologia sem alma está fadada a incorrer em anacronismos paradigmáticos. Se na Física, o átomo, em termos materiais, está cedendo lugar aos pacotes de energias ondulatórias, então o limite entre o físico e o imaterial perdeu-se, diante da impossibilidade de fixar-se uma realidade estável. Segundo Núbor as ciências da psiquê  "devem admitir uma energia controladora de nossos impulsos mentais" p. 109 para que se evidencie a origem espiritual do homem.

Para além da Filosofia, é fato que os pacientes geralmente tendem a aceitar o diálogo entre espiritualidade e a Ciência Positivista. O paciente corre em busca de tratamento médico-hospitalar mas também frequenta centros espirituais. Todo paciente guarda sua crença individual e intransferível em Deus, na Alma imortal,etc; realiza também sua prática religiosa, com assiduidade maior ou menor na execução prática das lições espirituais que aprende; tem também suas próprias experiências transcendentais episódicas e frequentemente traumáticas: visões ardentes e experiências de projeção astral que traduzem desdobramento do corpo espiritual.

Por fim Nubor apresenta o princípio da doença espiritual capazes de serem alvo do diagnóstico espírita. O pensamento é força criadora proveniente do Espírito que o impulsiona. A energia mental que o pensamento exterioriza exerce total influência no corpo espiritual, modificando sua forma, aparência e consistente. Por isso, afirma o autor, é que Allan Kardec "afirmou que se situa no perispírito a verdadeira causa de muitas doenças e a Medicina teria muito a ganhar quando compreendesse melhor sua natureza."(grifos meus) p. 143 Do ponto de vista espiritual "só tem saúde aquele que ainda não foi examinado", ou seja, se estamos no Planeta é porque somos endividados e comprometidos com os resgates e reencarnações que nos impedem de dizer que não temos doenças espirituais.

O tratamento de doenças espirituais consiste na reeducação do espírito através da reforma interior demandante de esforço, disciplina e dedicação. O médico não está ali para controlar a doença de quem o procura, mas sim para desempenhar o papel de orientador seguro. No processo de tratamento acontece a leitura do evangelho destituída de misticismo vulgar ou crenças superficiais. A fisiopatologia das doenças espirituais proposta pelo Dr. Núbor é a seguinte:


  • Desequilíbrio vibratório: desajuste na conexão e comunicação entre perispírito e corpo físico causada por pensamentos humanos imersos em mesquinharia e maldizer, blasfemas que impedem a sintonia vibratório propícia às manifestações dos fluidos espirituais pelo ser humano.
  • Doenças de auto-obsessão: o Pensamento adquire energia pois utiliza fluido cósmico Universal para criar em torno de nós  uma psicosfera (atmosfera psíquica) que representa nossos desejos. A auto-obsessão acontece quando somos escravizados por caprichos, falta de confiança em nós mesmos e reprodução de padrões de pensamento nocivos ao nosso bem-estar.
  • Vampirismo: segundo Allan Kardec o número de espíritos que habita nas proximidades dos ambientes terrestres é de 4 ou 5x a população atual de 6 bilhões de pessoas. Se podemos contar com sua guia e proteção, também estamos vulneráveis às intencionalidades espirituais que nós atraímos pelos vícios e que nos aprisionam pelo prazer. As entidades espirituais viciadas compartilham os prazeres do vício que o encarnado lhes favorece. A mente do responsável agrega em torno de si elementos fluídicos que aos poucos vão construindo miasmas psíquicos com capacidade corrosiva. O viciado, dependente químico, abusador sexual é estimulado pelos espíritos a permanecer no vício e perde muita energia.
  • Obsessão: na vida se operam encontros e desencontros com parceiros, sócios, cônjuges, pais e mãe, ettc para que resgatemos os compromissos que deixamos para trás. Criaturas humanas exigentes exercem domínio sobre nossas dívidas dificultando nossa ascensão a estágios espirituais elevados. Núbor menciona a obsessão simples, a fascinação e a possessão. Não devemos entender tais obsessões como um castigo ou punição da vida, mas sim como a possibilidade de recuperação de danos físicos e morais ocorridos nos passado.
  • Mediunidade: familiaridade na comunicação espiritual. Às vezes se passa sem que o médium se dê conte de que aquilo que percebe e escuta são comunicações espirituais raras não compartilhadas por todos. Há ainda o médium atordoado pela insegurança de se perceber diferente daqueles com quem convive; ou ainda o médium atormentado e vulnerável à ação de espíritos maliciosos.
  • Doenças cármicas: quando descuidamos de nosso corpo ou desequilibramos o próximo física ou espiritualmente imprimimos estes mesmos desajustes nas células do corpo espiritual que nos serve. As manifestações de doença que se seguem deve, ser vistas como oportunidades de resgate para que nos dediquemos a esclarecer a doença de forma ativa e não-resignada através da descoberta interior.



sábado, 13 de fevereiro de 2016

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Viagem a São Sebastião - Ilhabela



Dia anterior: 

Reggae do manero, Hermes e Renato, brinde de sakê.

tô com o cabelo ensebadoôô,
com o pé inchado de cachaceirôô

Dia 1

Taxista Marcos da Uber, um negrão grande de rosto simpático que veio nos buscar de madrugada falando sobre “o cliente ser tratado como pessoa”. Contou uma história hilária. Rimos todos com vontade. 

Eu com o Treguier sentado no meu colo olhei pela escuridão da madrugada na Corifeu e tive certeza de que seria uma boa viagem. Nos encaminhamos de metro até a estação Tietê e compramos as passagens para São Sebastião.

Descemos do busão no centro de São Sebastião e caminhamos até a balsa.

Ao chegar na ilha, caminhamos até o ponto de ônibus e entramos no busão que ia até Borrifos.

Em 1 hora de viagem chegamos ao ponto final que é exatamente numa estrada de terra no meio do nada. Descemos e andamos um pouco em direção ao Parque Estadual Ilhabela. 

Neste primeiro trecho da trilha as diversas cachoeiras cortadas pelas pontes e passarelas são cenário para exploradores despretensiosos, fotógrafos e jovens casais apaixonados. Lavamos nossos corpos sujos e suados na água fria e continuamos pela trilha larga de chão batido, fácil de andar mas longa e repleta de borrachudos. 

A questão das mochilas. 

O Treguier estava com problemas de bagagem muito pesada, e então a equipe optou por alternar turnos carregando sua mochila. Recomendamos a todos as bolsas de 50 ou 60l easy fit da Quéchua.

A tarde escureceu enquanto caminhávamos nesta trilha ondulada de barro batido, e decidimos acampar no alto do mirante a alguns quilômetros da praia do Bonete, de onde podíamos contemplar a sublime paisagem do arquipélago de Ilhabela.

Cuidado: Mosquitos!

Os malditos borrachudos (Simuliidae) são o problema de qualquer pessoa que se aventura em Ilhabela. No entanto, descobri que sou alérgico à picada destes mosquitos infernais. No decorrer de um dia recebi tantas picadas destes insetos detestáveis que minhas mãos incharam e tomaram a aparência de pãezinhos. Os braços também incharam e ganharam a textura plástica de um bebê muito fofo e chorão. Muita dor para segurar objetos, amarrar os cadarços, colocar a mochila, etc.

Eu comi lixo mas sobrevivi!

O grupo de seres humanos que acampara anteriormente naquele local descartou alguns mantimentos nos arredores do mirante. O Renato já havia preparado o jantar, e todo mundo já estava de barriga cheia, mas eu senti que aquelas torradinhas salgadas e crocantes cairiam bem como sobremesa! Também cresci os olhos sobre a latinha amarela de leite Ninho que tava dando sopa ali, lacradinha. Misturei com água e fiz uma pasta deliciosa. Eu tive certeza de que os mantimentos haviam sido descartados no máximo há um 1 atrás, e que estavam limpos, mas ninguém pareceu botar fé.
Comi tudo sozinho e fui dormir rezando para não ter intoxicação alimentar e nem explodir de tanto inchar.

Conquistaremos mais uma barraca, Romoaldo!

No acampamento que armamos havia excesso de borrachudos e fedor masculino, com carência de espaço pois dormiram 3 nêgos dentro da mesma barraca. Foi a pior noite de sono da minha vida. Sinto que somando o tempo de sono na noite eu dormi no total uns 5 minutos porque estava acordando transtornado e suado a cada segundo. Abri a portinhola para arejar a barraca e poder estender a perna mas este foi um trade off ingrato pois os mosquitos invadiram a barraca e puderam tocar ainda mais o Terror. 

dia 2.

Pela manhã muito desespero e desolamento na barraca que agora, além de tudo, já estava fervilhando pelo Sol das 9h da manhã que incidia brutal e diretamente sobre o altiplano do mirante. A preocupação da equipe era se eu teria condições para continuar a trilha.

Desarmamos as barracas e seguimos pela continuação da trilha até chegarmos ainda de manhã à praia do Bonete com sua areia alva e muitas lanchas.

O Bonete é atração para jovens e adultos que querem desfrutar um feriado mais próximos à natureza. Procurando pelo camping conhecemos uma garota de pele morena clara e drealocks sintéticos na cabeça, que disse se chamar Maria e estar hospedada exatamente onde precisávamos ir. Nos guiou pelas ruazinhas do vilarejo até o camping, que era no quintal de uma casa. Lá havia, cozinha coletiva, banheiros, água quente e espaço embaixo das árvores para armar as barracas.

Muita maconha rolando, laricas apetitosas no fogão à lenha e jovens roots ou rootzeiros em geral, bem-humorados e dispostos a trocar uma ideia bacana para tentar se conhecer.

A importância de levar antialérgicos.

Eu precisava me recuperar do esgotamento do dia anterior e curar minha mão inchada. Entrei na barraca para cochilar durante a tarde e foi quando a situação mais grotesca aconteceu. Um borrachudo invadiu a barraca, me picou bem no lábio e eu imediatamente senti a pele do meu beiço inchando como um balão preenchido de ar quente.

O Honda disse que minha aparência despertava bad trip. Não duvido disso. Pelo menos todos do camping riram de mim, e riram comigo!

Tomei os antialérgicos que a equipe sabiamente havia trazido para a ilha, e fui dormir torcendo para acordar melhor, e que pudéssemos continuar nos divertindo no dia seguinte.


dia 3.

Acordamos e tudo ainda estava escuro. Minha boca inchada não me impediu de continuar. Seria um dia cansativo e também sensacional por paisagens imprevisíveis e sublimes.

Desmontamos o acampamento e logo chegamos à praia de Anchovas ainda antes de o Sol começar a tostar nossa pele por dentro das camisetas dri-fit encharcadas de suor. Avistamos um pescador de pele branca vestido com macacão de borracha azul sendo ajudado por sua mulher a mexer nas redes de pesca.

Os cachorros olhudos vieram nos receber ensaiando investidas e latindo ofensivamente. O senhor se  chamava Anacreto e disse que aquela praia era particular. Embora lá houvesse um heliporto Anacreto afirmou “aqui não tem nada além de borrachudo”.

Morro acima subimos por uma trilha bem marcada e apinhada de samambaias tamanho-família. As altas árvores de copa densa protegiam-nos do Sol imponente. Estávamos suando por todos os poros do corpo. O líquido salgado que escorria pela testa ardia os olhos e embaçava a lente dos óculos. Nossas roupas embebidas por suor pingavam, e quando o vento batia era toda uma sensação de frescor e satisfação.

Uma surpresa muito louca!

Estávamos no meio da Mata Atlântica selvagem e inóspita enquanto os pássaros, as cigarras e todo tipo de inseto saudavam nossos passos com euforia. Então subitamente a coisa mais improvável do mundo aconteceu quando adentramos um condomínio particular com calçadinhas de paralelepípedo conduzindo-nos a jardins amplos e Casas da Cascata de Frank Lloyd Wright.

Placas com sinais de “Entrada terminantemente proibida” abocanhavam o espaço e intimidavam o trilheiro que se pergunta "É o ser humano bicho assim tão mesquinho mesmo?"

Descemos pelas largas vias do condomínio de elite e a situação mais improvável e fascinante do mundo aconteceu quando nos deparamos com a magnitude colossal da Praia de Indaiaúba. Sua beleza tranquila era equivalente à grandeza de sua extensão e o tamanho das enormes rochas dispostas ali elegantemente por Deus. Gaivotas a apreciavam os tons esmeralda e turquesa translúcidos do oceano. Libélulas em seu voo matinal inspecionavam elegantemente as cracas esverdeadas que cresciam nas rochas, em ecossistemas tão ricos e complexos quanto a vida em si mesma. 

Depois de descansar deixamos a altitude do mar para subir agora por uma trilha muito íngreme e abafada. Interrompemos a marcha várias vezes para descansar enquanto subíamos. Alcançamos o pico e depois contornamos toda a montanha por um terreno quase plano que se embrenhava pela úmida mata atravessada por córregos rasos.

Território de aranhas e mutucas. 

Muito atenção neste trecho! O Renato já estava com as panelas na mão para cozinhar quando um bicho nervoso e intimidador que nos espreitava pelas folhas veio zunindo de longe, trazendo muito pânico ao ferroar o Honda por cima mesmo da camiseta! 

Motuca (Tabanidae) é um bicho do tamanho de uma amora que faz pensar em como no meio do mato o ser-humano não é, enfim, um animal tão onipotente quanto se concebe ser. 

Uma só motuca foi suficiente para nos expulsar dali. Concluindo, o Renato guardou as panelas e andamos por mais 2km, mortos de fome, antes de almoçar.

Espetacular era quando passávamos por alguma clareira…! Árvores de troncos grossos desabadas umas naturalmente sobre as outras evidenciavam elegantemente o Grande Plano da Natureza. O Sol banhava estes templos da vida silvestre que acontece em níveis tão microcósmicos quanto sutis, misteriosos e sagrados.

O correr das águas nas cachoeiras ao longe fundia-se ao murmúrio que as árvores fazem e ao som dos insetos e pássaros numa relaxante harmonia de sons naturais. Uma delicada vespa amarela inspecionou calmamente a folha de textura rugosa e proporcionalmente gigantesca para seu tamanho e foi embora.

Uma cultura que vive e resiste.

Chegamos à Praia Vermelha por volta das 16h. Almoçamos enquanto observávamos os caiçaras que vivem ali isolados da cidade e de sua loucura diabólica, que suga o espírito do homem citadino em troca de alguns trocados.

Vi uma criança ajudando seu irmão a preparar um barco. O jovem zarpa e some no horizonte deixando apenas o som de seu automóvel como rastro. A criança ficou na praia, brincando com os cachorros. Nas cadeiras de balanço à entrada das casas os velhos observavam aquela praia que consistia não só um quintal, mas também um meio de produção e sua vida.

São homens livres que não vendem sua força de trabalho a nenhum porco-vampiro capitalista.

Um barqueiro de pele marrom tostada chega despretensiosamente do oceano e estaciona na areia acenando a nós no entardecer fresco e perfeito. Gente simples e rústica que resiste contra as investiduras de um Sistema que em sua expansão Ilha adentro busca homogenizar as formas de vida e cultura do Homo sapiens. 

Deixamos a praia e às 17h estávamos nós de novo ascendendo morros com inclinação, sem exagero da minha parte, próximas mesmo a uns 90º. Indo em frente passamos por casas simplórias e uma Igreja Pentecostal Deus é Amor.

Valeu por ter suportado, Diego! 

Este momento também foi de muita apreensão pois o nosso companheiro Diego estava sentindo ânsia de vômito devido ao desgaste físico sofrido no decorrer do dia. O dedão do pé dele estava em carne viva e expelia muito pus. 

O Sol já tinha se posto quando chegamos a Castelhanos, a praia mais fantástica que já tive a oportunidade de visitar. Sua baía é longa e larga, com uma ilhota verde fixa em profundas águas densas e intimidantes.

O maravilhoso camping do seu Léo.

Um amplo e aconchegante pasto de areia coberto nas extremidades por grandes lonas sob as quais os viajantes armam suas barracas. A alguns metros de nós o movimento etéreo da estrada por onde desfilavam os pedestres, jipes e bicicletas num ritmo hipnotizante e em câmera lenta. 

Dia 4. 

Um dia de descanso e realização.

Tínhamos todo o dia para curtir e descansar!

Senti-me uno com aquele lugar. Existindo, e compartilhando com os amigos. Buscando aprender com os erros, e perdoando sempre.

Naquela noite só as crianças brincaram na orla da praia em frente ao acampamento. Meninas e meninos riam, e as luzes de suas lanternas por entre as os galhos das árvores iluminavam o céu escuro.

Dia 5.

18km até a civilização

Levantamos às 5h e deixamos o camping do Seu Léo às 7h da manhã.  Caminhamos »muito« pela estrada de paralelepípedos. Só jipes e motos indo e vindo. As pessoas do alto de seus automóveis batiam palmas para nós, os resilientes trilheiros inchados, fedidos e com ossos moídos pela dor. Depois de mais de 6 horas de caminhada chegamos à portaria do Parque e almoçamos. Tomamos o ônibus, passamos pela balsa e embarcamos para São Paulo às 16h40.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Damo Suzuki

"Eu tenho certeza que quando você é jovem não é melhor receber muita informação na sua cabeça, o melhor é ir lá fora e se alimentar de suas próprias experiências, e você finalmente conseguirá contar suas próprias histórias. "

"Se você voltar para a natureza Deus está lá. (Eu não estou dizendo que Deus é a natureza). Se você mora na civilização Deus não está aí, o homem civilizado pensa que pode fazer tudo, eles acreditam demais em si mesmos. Mas eles não são tão felizes. Porque nas cidades você não consegue captar a harmonia da natureza e você não conhece nem sua vizinhança. E você precisa de drogas para te dar um barato. (A pior coisa é o álcool, porque você pode comprá-lo em qualquer lugar, sem nenhum problema e a preços muito acessíveis.) Todo dia eu trabalho nesta sociedade, por isso é tão agradável estar fora dela por alguns momentos do ano e ir embora para os lugares solitários."

"Quando você tem experiências próprias é como um filme, um filme só seu. Depois de uma viagem você pode contar a seus amigos as experiências na sua própria língua. A maioria das pessoas nesse mundo são muito passivas. A informação chega pela mídia e elas acreditam e conversam assuntos que não tem nada a ver com elas mesmas, assuntos que as pessoas não entendem pois estão recebendo informação de segunda-mão."

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

aniversário do Sleazy dia 27/02

excelente conteúdo a todos os interessados em body piercing, vegetarianismo, rituais com transe induzido e música eletrônica experimental em geral.

filmagem realizada em Krabi, pequena província ao Sul da Tailânda, por

Peter Cristopherson, que foi uma das mentes-mestras por trás do Coil - duo industrial esotérico e mágico que junto da poesia do médium John Balance sagrou-se como referência na música Ocidental contemporânea >para além do entretenimento<

na data de hoje Sleazy completaria 61 anos. quando partiu deste plano material em 2010 seu parceiro John Balance já partira há 6 anos (2004).

grande >>avô<< e inovador, Sleazy nos coletivos dos quais participou defendia a arte como instrumento de emancipação posto em movimento através da atitude "faça-você-mesmo-ou-morra" (DIY or DIE). uma forma de contornar e derrubar o controle  institucional-político-econômico-material e tecnológico do Sistema contra a consciência do ser humano no século XX.

na época, gravavam e lançavam independentemente as fitas, vinis e bootlegs que inspiravam transgressão e confronto. junto com o Throbbing Gristle foi acusado de "destruidores da civilização" pelo parlamentar inglês Nicholas Fairbairn. (estas foram as estratégias do passado. há ainda muita coisa a ser feita; como devemos agir?)

filmagem muito sensível e visceral, com trilha sonora angelical e meditativa. no Festival os jovens noviços mutilam seus próprios corpos para purificar o vilarejo dos espíritos malignos, e recebem dos aldeões prendas em agradecimento.

vida longa ao espírito de Sleazy, vivo ainda em suas ideias.
e que nos deixemos inspirar!




Peter Cristopherson com Throbbing Gristle


Peter Cristopherson com Genesis P-Orridge - anos 80 (Psychick TV)

Coil nos anos 2000: Sleazy com John Balance e Thighpaulsandra.
The Threshold HouseBoys Choir - o último projeto de Sleazy

ovo de dragão

meu...! pitaia fez sucesso aqui em casa...!
minha mãe comprou mais hoje no mercado.
R$ 7,00/kg...veio duas no quilo!

eu peguei ela na mão para abrir, lavei.
deslizando o corte agudo pelo lobo da casca
senti a fibra almofadada cedendo, e quando a rompi
avistei mais uma vez o rígido mesocarpo fúcsia
como cálice colorado e vistoso contendo
a úmida polpa branca pontilhada por sementes.

faz-se em pedaços com a pressão de uma língua
e deixa derramar seu suco,
dissolvendo-se na boca...

adorei essa fruta!!

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Sobre Xamanismo

Como Wei Wu Wei disse, "Para ser efetiva a verdade deve penetrar como uma flecha - e é provável que isso machuque." A verdade dói, mas a verdade cósmica dói mais ainda.

Um ser natural. Você é agora da terra.

O tipo de conhecimento obtido é conhecimento-de-osso, uma sabedoria de profundidade medular, uma compreensão do calibre de uma alma.

Pela sua simples presença você cataliza. Você é uma ótima fermentação.

Que deixem de permitir que o medo controle-os, e se tornem íntimos com o Medo.

O mais alto estado de consciência, onde a imaginação é livre para reimaginar a si mesma.

"O esquizofrênico está se afogando nas mesmas águas nas quais o místico nada com prazer."

Você é um microcosmos no interior de um macrocosmos.

"Devemos morrer como egos e renascermos como enxame, não separados e auto-hipnotizados, mas individuais e relacionados." - Henry Miller

"Consciência indiferenciada, quando diferenciada, torna-se o mundo." - Vedanta

Você simplesmente deve abandonar o que você pensa que seu ego quer para conseguir fazer possível aquilo que sua alma intenciona.


exercício do dia: Jovem estilo "born to die"

Um jovem de 27 anos de idade. Muito feio, com dentes pequenos e afiados, olhos esbugalhados e face 30% menor que a média da população. Seu cabes cabelos longos e sebosos chegavam aos ombros.  Magro e pequeno, tinha aparência pelo menos 10 anos mais velha por conta de seu estilo de vida acelerado. Levava a vida como um caminho - curto ou longo, que seja! viver e morrer: uma aposta - para a morte, e portanto gostava de passar seu tempo livre em círculos degradantes de prazer e luxúria. Viver para perecer - e fazer isso com estilo: ser o degenerado que inspira as futuras gerações da distopia cinzenta que é a cidade de São Paulo.

Pensava "Que as minas fodam sozinhas suas bucetas sangrentas ou que arranjem longe de mim um otário babão para cair em seus feitiços. Olha bem para o meu rosto, cara - e esbugalhava ainda mais os olhos! - você acha que a bússola da minha vida é a porra de uma buceta? Que culpa tenho eu de ter nascido um animal sexuado? Se eu pudesse seria um urso e hibernaria para sempre, do meu pau o único líquido que sairia seria o mijo. Como não posso, tenho pelo menos tenho dinheiro suficiente para habitar o submundo e descolar uma buceta cheirosinha e apertada quando eu estiver precisando, etc". Também pensava "Por que as atividades que escolho fazer no meu tempo entre-sonos tem que ser convertida em dinheiro - e quanto mais melhor! - para que eu consiga algum prestígio social? Que mundo estúpido!"

Toda a pena que uma vez sentiu de si mesmo e de sua humanidade corrompida fora agora convertida em indiferença a tudo e a todos. Nesse estágio da sua vida não se importava mais com a dicotomia "bem ou mal", ignorava a lei do Karma e seu pensamento era a medida de todas as coisas. "Eu quero, eu preciso. Onde está? Quando e onde?" 

Quinta-feira, fechou às 17h o turno no ferro velho e andava com aquela sede a passos largos e apressados pela Praça Princesa Isabel. O Sol ainda batia forte na cabeça dos paulistanos mas neste minuto e meio as grandes e carregadas nuvens sopradas pelo vento em direção ao Norte da cidade passaram na calçada uma sombra refrescante que caía sobre as árvores ao lado das quais muitos dependentes químicos socialmente vulneráveis repousavam. Um preto velho pensando que o tempo ia mudar falou baixinho no ouvido do vira-lata em seu colo " a chuva vai cair para levar embora toda essa sujeira..." Mas as majestosas nuvens se foram e o Sol veio forte novamente arrancando suor da testa de todos os negros com roupas rasgadas e pés cobertos por crosta preta, corpos esfolados derramados sobre a grama cagada pelo cachorro do playboy que anda pela mesma praça confortável, e sentindo-se seguro ouve Lady Gaga no fone de ouvido sem-fio pensando, enquanto o peludo e gordo labrador dispara a latir atrás do vira lata do velho mendigo, "preciso comprar o novo iPhone da Apple".

Quando o feioso passava em frente ao deplorável prédio nos Campos Elísios onde morava, o quartel-general de sua vida não-ambiciosa e imunda cachorros brigavam, o velho dava pauladas no labrador e o playboy ainda com fone de ouvidos puxava sem muito ímpeto a corrente, gritando "Solta, Réx! Larga o pescoço do cachorro do moço!!!"

Parou em frente à portaria do prédio. Pensou em subir e tomar uma ducha mas não gostou da ideia. Estava com muita sede, e além disso, "que tipo de pessoa se arruma para ir na Lanchonete Kuroda e no Bar do Bin na porra de uma quarta-feira? Foda-se." Percorreu a Rio Branco observando a casa do norte, os negros vendedores de relógio, e o sem-número de bares, dos quais a visão da cerveja gelada impregnou-se nele e silenciosamente guiou seus passos. Já estava na Avenida São João quando irromperam pela calçada dois travestis falando "é aqui" e sumindo porta adentro de um comércio e deixando perplexo o homem que mais ao lado descansava sentado na calçada. 

Através da Galeria Olido já estava na calçada em território da Galeria do Rock .  Atentos aos vermes que passam de lá para cá com quepe e arma na cintura os ambulantes de rostos reconhecíveis e suas coleções de DVDs piratas estampando japonesas amarelas de cus lisinhos e photoshopados.

Vários grupos de jovens vestidos de preto. Podia se aproximar e conversar com qualquer pessoa ali. Umas piores que os outras, mais embriagadas, mais estriquinadas, mais animadas, mais endemonizados; mais estilosas também. Seu visu inconfundível não era menosprezado: calças jeans desbotadas e justas, um sintético azul e vermelho nos pés, o tronco fino coberto por camiseta preta de qualquer banda mesmo: ele conhecia tudo, rock'n'roll era sua vida. Não fazia questão de trocar de roupa depois do trabalho, apenas trocava a bota preta de catador pelo sneaker.

Muitos anos já frequentando aquele ambiente lhe conferiram experiência. E o rolê era sempre assim: encher a cara e conversar com os nóias para descobrir coisa nova. E pensando nisso desceu a rampa, sentou na cadeira de madeira e pediu um litrão de Skol. Tirou da mochila o copo de chopp largo e alto. Recebeu da encorpada garçonete a garrafa como uma criança recebe o peito inchado da mãe. Botou o copo na mesa, encheu até a borda e sorveu em goladas todo o conteúdo.


"Saúde!"

Sentado sozinho e impaciente na mesa pensava sobre a insignificância da vida. Niilismo de mais baixo nível. A única coisa que achava que possuía era seu corpo, sujo e podre. Um corpo em contínuo progresso de definhamento. Gostava de sofrer: corpo malhado pela dor de carregar peso físico no trabalho, e mente cheia de nós que impediam o pensamento de seguir livre em frente. Sentia saudades da época em que era sensível ao álcool e tinha ressacas. Foi ao banheiro, bateu uma punheta e gozou na própria mão enquanto nutria o pensamento de que:

"Depois de viver esta vida nefasta e cheia de contradições que estilhaçam minha consciência - a própria encarnação do Demônio auto-indulgente e destituído de qualquer moral ou culpa - vou morrer, a carne do corpo defunto vai apodrecer e nada além da ossada sobrará. A essa altura "eu" já não vou mais existir. Uma fagulha de vida que se apagou. Vou dormir eternamente, e sem jamais sonhar."

Engoliu a própria porra, destrancou o ferrolho de metal e saiu do banheiro. No balcão avistou Lima rindo muito alto com sua boca escancarada cheia de dentes podres. 

"HAHAHAHAHAH eu lembro de quando eu era pivete e andava com a camiseta do Iron Maiden e ia fazer corre na favela. eu ia lá tantas vezes...! quando eu aparecia lá de madrugada os caras já até sabiam o que eu queria. eles falavam assim olha lá o metaleiro. dá a farinha do metaleiro! HAHAHAHAHAHA"

Sentou ao lado de Lima, esse velho gárgula preto que gostava de iniciar os mais novos nos prazeres da coca. Lembrou-se de quando o conheceu ali na Galeria e disse que nunca havia cheirado nenhuma vez.  Nessa ocasião Lima riu tanto até perder o fôlego e tossir. Dava murros no balcão de mármore acinzentado molhado pelo suor das garrafas de cerveja, e quando a costela já doía de tanto rir perguntava em tom de chacota e limpando a lágrima dos olhos

"nunca?!" e continuava a rir. 

Por fim, concluiu a sedução ao adicionar

"Aparece aí sábado que vem no meu aniversário, meu garoto! Eu trago para você! HAHAHAHAHA"

No começo estranhou a ideia "Por que alguém comemoraria o aniversário aqui nesse pulgueiro? Pra poder convidar todos os nóias da São João, só se for..." Mas não hesitou. No sábado deu aquele tiro com Lima e sentiu pela primeira vez sua face adormecida, seu cérebro selado por rédeas firmes, a concentração nas alturas e o movimento dos carros na metrópole lá fora em câmera lenta. Andou pelo centro escuro naquela noite observando Lua brilhante lá em cima, e se sentiu mais seguro do que nunca. Se algum indigente quisesse assaltá-lo tinha certeza de que conseguiria arrancar com as mãos o pescoço do filho da puta e comer seus olhos crocantes e crus.

Mas hoje estava suave. Lima passou um lenço no nariz, pediu mais uma garrafa de cerveja e foi ao banheiro.

O feioso levantou e ficou parado em frente ao bar com seu copo de chopp personalizado. Ali parado não deixou de ser cumprimentado por todos os que passavam. Toques de mão estridentes e ecoantes com a molecada, e beijos na mão e fungada no pescoço das gatinhas cheirosas. As velhas e os velhos donos dos botecos invariavelmente o cumprimentavam com beijos na testa. Apesar de feio, seu riso era sincero e inspirava alegria. Não aquela alegria de positividade e otimismo, mas aquele tesão pela vida próprio da pessoas sanguíneas, ativas e desapegadas.

Com seu ritmo de conversa espalhafatosa e incansável ria alto e todos riam juntos. 

Um rapaz muito bonito, muito querido, e que não ia durar muito. O mundo precisa de mais gente assim, de mais artistas, dissidentes e teimosos. Cada um escolhe seu veneno, e se você achar que vive melhor que outra pessoa: surpresa!: você também vai morrer. Prefiro os que morrem de alguma coisa àqueles que morem de nada, de diabetes, de hipertensão ou de ódio e inveja mesmo.  

Como diria o Poeta do Submundo: "Sem neurose. Cada um sabe o dom, e o dom é o tamanho da dose. Não tenho explicações a fazer. Quem sabe de mim sou eu, quem sabe de você, é você."

Porque se a cidade fosse composta só por gente cretinamente obediente, gente engravatada que só demonstra simpatia a quem tem a cara bonita, que ri sem vontade e não sabe conversar nada além de preços e trivialidades clichês sobre temas mundanos e idiotas, gente que trabalha para comprar e tira férias para descansar e descansa para trabalhar mais e encher egoisticamente o rabo de dinheiro em ganância, os amantes do ouro...

(Desse conjunto acrítico e individualisticamente indiferente se exclui a população, a massa mal-educada filha do lixo-histórico Ocidental sul-americano que é o Pais, sem oportunidade nem perspectiva de sair da marginalidade, o imigrante que batalha, o favelado, os nóias, a mulher-dona-de-casa-esposa-mãe-e-trabalhadora que pega metro e gira todo dia a engrenagem triturante do Sistema cujo peso cai como bigorna todo dia sobre suas costas arreadas)...

... enfim, se a cidade fosse composta só de gente mesquinha e inescrupulosa que pensa ser a educação apenas um degrau ou palanque para que se fique mais bem qualificado a ter sua energia vital sugada pelas corporações e necessariamente pisar com pesadas botas de couro nas costas de seus irmãos trabalhadores humanos menores, se o mundo dependesse só desse tipo de gente que ignora a consciência histórica e a relação de causalidade entre fatos,  então seria um lugar muito mais cinza, estéril e perverso.

Salve, feioso! "Somos poucos mas somos loucos."