segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

exercício do dia: Jovem estilo "born to die"

Um jovem de 27 anos de idade. Muito feio, com dentes pequenos e afiados, olhos esbugalhados e face 30% menor que a média da população. Seu cabes cabelos longos e sebosos chegavam aos ombros.  Magro e pequeno, tinha aparência pelo menos 10 anos mais velha por conta de seu estilo de vida acelerado. Levava a vida como um caminho - curto ou longo, que seja! viver e morrer: uma aposta - para a morte, e portanto gostava de passar seu tempo livre em círculos degradantes de prazer e luxúria. Viver para perecer - e fazer isso com estilo: ser o degenerado que inspira as futuras gerações da distopia cinzenta que é a cidade de São Paulo.

Pensava "Que as minas fodam sozinhas suas bucetas sangrentas ou que arranjem longe de mim um otário babão para cair em seus feitiços. Olha bem para o meu rosto, cara - e esbugalhava ainda mais os olhos! - você acha que a bússola da minha vida é a porra de uma buceta? Que culpa tenho eu de ter nascido um animal sexuado? Se eu pudesse seria um urso e hibernaria para sempre, do meu pau o único líquido que sairia seria o mijo. Como não posso, tenho pelo menos tenho dinheiro suficiente para habitar o submundo e descolar uma buceta cheirosinha e apertada quando eu estiver precisando, etc". Também pensava "Por que as atividades que escolho fazer no meu tempo entre-sonos tem que ser convertida em dinheiro - e quanto mais melhor! - para que eu consiga algum prestígio social? Que mundo estúpido!"

Toda a pena que uma vez sentiu de si mesmo e de sua humanidade corrompida fora agora convertida em indiferença a tudo e a todos. Nesse estágio da sua vida não se importava mais com a dicotomia "bem ou mal", ignorava a lei do Karma e seu pensamento era a medida de todas as coisas. "Eu quero, eu preciso. Onde está? Quando e onde?" 

Quinta-feira, fechou às 17h o turno no ferro velho e andava com aquela sede a passos largos e apressados pela Praça Princesa Isabel. O Sol ainda batia forte na cabeça dos paulistanos mas neste minuto e meio as grandes e carregadas nuvens sopradas pelo vento em direção ao Norte da cidade passaram na calçada uma sombra refrescante que caía sobre as árvores ao lado das quais muitos dependentes químicos socialmente vulneráveis repousavam. Um preto velho pensando que o tempo ia mudar falou baixinho no ouvido do vira-lata em seu colo " a chuva vai cair para levar embora toda essa sujeira..." Mas as majestosas nuvens se foram e o Sol veio forte novamente arrancando suor da testa de todos os negros com roupas rasgadas e pés cobertos por crosta preta, corpos esfolados derramados sobre a grama cagada pelo cachorro do playboy que anda pela mesma praça confortável, e sentindo-se seguro ouve Lady Gaga no fone de ouvido sem-fio pensando, enquanto o peludo e gordo labrador dispara a latir atrás do vira lata do velho mendigo, "preciso comprar o novo iPhone da Apple".

Quando o feioso passava em frente ao deplorável prédio nos Campos Elísios onde morava, o quartel-general de sua vida não-ambiciosa e imunda cachorros brigavam, o velho dava pauladas no labrador e o playboy ainda com fone de ouvidos puxava sem muito ímpeto a corrente, gritando "Solta, Réx! Larga o pescoço do cachorro do moço!!!"

Parou em frente à portaria do prédio. Pensou em subir e tomar uma ducha mas não gostou da ideia. Estava com muita sede, e além disso, "que tipo de pessoa se arruma para ir na Lanchonete Kuroda e no Bar do Bin na porra de uma quarta-feira? Foda-se." Percorreu a Rio Branco observando a casa do norte, os negros vendedores de relógio, e o sem-número de bares, dos quais a visão da cerveja gelada impregnou-se nele e silenciosamente guiou seus passos. Já estava na Avenida São João quando irromperam pela calçada dois travestis falando "é aqui" e sumindo porta adentro de um comércio e deixando perplexo o homem que mais ao lado descansava sentado na calçada. 

Através da Galeria Olido já estava na calçada em território da Galeria do Rock .  Atentos aos vermes que passam de lá para cá com quepe e arma na cintura os ambulantes de rostos reconhecíveis e suas coleções de DVDs piratas estampando japonesas amarelas de cus lisinhos e photoshopados.

Vários grupos de jovens vestidos de preto. Podia se aproximar e conversar com qualquer pessoa ali. Umas piores que os outras, mais embriagadas, mais estriquinadas, mais animadas, mais endemonizados; mais estilosas também. Seu visu inconfundível não era menosprezado: calças jeans desbotadas e justas, um sintético azul e vermelho nos pés, o tronco fino coberto por camiseta preta de qualquer banda mesmo: ele conhecia tudo, rock'n'roll era sua vida. Não fazia questão de trocar de roupa depois do trabalho, apenas trocava a bota preta de catador pelo sneaker.

Muitos anos já frequentando aquele ambiente lhe conferiram experiência. E o rolê era sempre assim: encher a cara e conversar com os nóias para descobrir coisa nova. E pensando nisso desceu a rampa, sentou na cadeira de madeira e pediu um litrão de Skol. Tirou da mochila o copo de chopp largo e alto. Recebeu da encorpada garçonete a garrafa como uma criança recebe o peito inchado da mãe. Botou o copo na mesa, encheu até a borda e sorveu em goladas todo o conteúdo.


"Saúde!"

Sentado sozinho e impaciente na mesa pensava sobre a insignificância da vida. Niilismo de mais baixo nível. A única coisa que achava que possuía era seu corpo, sujo e podre. Um corpo em contínuo progresso de definhamento. Gostava de sofrer: corpo malhado pela dor de carregar peso físico no trabalho, e mente cheia de nós que impediam o pensamento de seguir livre em frente. Sentia saudades da época em que era sensível ao álcool e tinha ressacas. Foi ao banheiro, bateu uma punheta e gozou na própria mão enquanto nutria o pensamento de que:

"Depois de viver esta vida nefasta e cheia de contradições que estilhaçam minha consciência - a própria encarnação do Demônio auto-indulgente e destituído de qualquer moral ou culpa - vou morrer, a carne do corpo defunto vai apodrecer e nada além da ossada sobrará. A essa altura "eu" já não vou mais existir. Uma fagulha de vida que se apagou. Vou dormir eternamente, e sem jamais sonhar."

Engoliu a própria porra, destrancou o ferrolho de metal e saiu do banheiro. No balcão avistou Lima rindo muito alto com sua boca escancarada cheia de dentes podres. 

"HAHAHAHAHAH eu lembro de quando eu era pivete e andava com a camiseta do Iron Maiden e ia fazer corre na favela. eu ia lá tantas vezes...! quando eu aparecia lá de madrugada os caras já até sabiam o que eu queria. eles falavam assim olha lá o metaleiro. dá a farinha do metaleiro! HAHAHAHAHAHA"

Sentou ao lado de Lima, esse velho gárgula preto que gostava de iniciar os mais novos nos prazeres da coca. Lembrou-se de quando o conheceu ali na Galeria e disse que nunca havia cheirado nenhuma vez.  Nessa ocasião Lima riu tanto até perder o fôlego e tossir. Dava murros no balcão de mármore acinzentado molhado pelo suor das garrafas de cerveja, e quando a costela já doía de tanto rir perguntava em tom de chacota e limpando a lágrima dos olhos

"nunca?!" e continuava a rir. 

Por fim, concluiu a sedução ao adicionar

"Aparece aí sábado que vem no meu aniversário, meu garoto! Eu trago para você! HAHAHAHAHA"

No começo estranhou a ideia "Por que alguém comemoraria o aniversário aqui nesse pulgueiro? Pra poder convidar todos os nóias da São João, só se for..." Mas não hesitou. No sábado deu aquele tiro com Lima e sentiu pela primeira vez sua face adormecida, seu cérebro selado por rédeas firmes, a concentração nas alturas e o movimento dos carros na metrópole lá fora em câmera lenta. Andou pelo centro escuro naquela noite observando Lua brilhante lá em cima, e se sentiu mais seguro do que nunca. Se algum indigente quisesse assaltá-lo tinha certeza de que conseguiria arrancar com as mãos o pescoço do filho da puta e comer seus olhos crocantes e crus.

Mas hoje estava suave. Lima passou um lenço no nariz, pediu mais uma garrafa de cerveja e foi ao banheiro.

O feioso levantou e ficou parado em frente ao bar com seu copo de chopp personalizado. Ali parado não deixou de ser cumprimentado por todos os que passavam. Toques de mão estridentes e ecoantes com a molecada, e beijos na mão e fungada no pescoço das gatinhas cheirosas. As velhas e os velhos donos dos botecos invariavelmente o cumprimentavam com beijos na testa. Apesar de feio, seu riso era sincero e inspirava alegria. Não aquela alegria de positividade e otimismo, mas aquele tesão pela vida próprio da pessoas sanguíneas, ativas e desapegadas.

Com seu ritmo de conversa espalhafatosa e incansável ria alto e todos riam juntos. 

Um rapaz muito bonito, muito querido, e que não ia durar muito. O mundo precisa de mais gente assim, de mais artistas, dissidentes e teimosos. Cada um escolhe seu veneno, e se você achar que vive melhor que outra pessoa: surpresa!: você também vai morrer. Prefiro os que morrem de alguma coisa àqueles que morem de nada, de diabetes, de hipertensão ou de ódio e inveja mesmo.  

Como diria o Poeta do Submundo: "Sem neurose. Cada um sabe o dom, e o dom é o tamanho da dose. Não tenho explicações a fazer. Quem sabe de mim sou eu, quem sabe de você, é você."

Porque se a cidade fosse composta só por gente cretinamente obediente, gente engravatada que só demonstra simpatia a quem tem a cara bonita, que ri sem vontade e não sabe conversar nada além de preços e trivialidades clichês sobre temas mundanos e idiotas, gente que trabalha para comprar e tira férias para descansar e descansa para trabalhar mais e encher egoisticamente o rabo de dinheiro em ganância, os amantes do ouro...

(Desse conjunto acrítico e individualisticamente indiferente se exclui a população, a massa mal-educada filha do lixo-histórico Ocidental sul-americano que é o Pais, sem oportunidade nem perspectiva de sair da marginalidade, o imigrante que batalha, o favelado, os nóias, a mulher-dona-de-casa-esposa-mãe-e-trabalhadora que pega metro e gira todo dia a engrenagem triturante do Sistema cujo peso cai como bigorna todo dia sobre suas costas arreadas)...

... enfim, se a cidade fosse composta só de gente mesquinha e inescrupulosa que pensa ser a educação apenas um degrau ou palanque para que se fique mais bem qualificado a ter sua energia vital sugada pelas corporações e necessariamente pisar com pesadas botas de couro nas costas de seus irmãos trabalhadores humanos menores, se o mundo dependesse só desse tipo de gente que ignora a consciência histórica e a relação de causalidade entre fatos,  então seria um lugar muito mais cinza, estéril e perverso.

Salve, feioso! "Somos poucos mas somos loucos."

Nenhum comentário:

Postar um comentário