domingo, 31 de janeiro de 2016

Vilém Flusser - Filosofia da Caixa Preta (fichamento livre dos 3 primeiros capítulos + citações do quarto em diante)

Câmera fotográfica: aparelho pós-industrial com possibilidades finitas de execução de superfícies simbólicas.

"O fotógrafo age em prol do esgotamento do programa e em prol da realização dos universo fotográfico".

Câmera como brinquedo: fotógrafo como homo ludens  (versus homo faber). Homem brinca contra seu brinquedo. De maneira que não esteja cercado de instrumentos (artesão medieval), nem submisso à máquina (proletário industrial) mas sim dentro do aparelho. Funcionário e aparelho se confundem.

"Funcionários dominam jogos para os quais não podem ser totalmente competentes." Fotógrafo como incapaz de esgotar a fotografia, pois não precisa saber o que se passa no interior da caixa. Domina input e output. Entretanto o aparelho é programado pela indústria, que é programada pela economia, que o é pela forma de pensar... O ato de fotografar desvenda a própria condição pós-industrial.

Hardware: coisa dura, a câmera, plástico, lente, metal
Software: impalpável.

Assim,
hardware: permite produção de fotografias automáticas;
software: programação que permite ao fotógrafo fazer com que fotografias deliberadas sejam produzidas.

Fotografia como maniqueísmo realizado pelo sistema -fotógrafo-aparelho, ou seja, seleção de momentos (e não processos) para magicizar.

Fotografia PB valoriza mais os conceitos, pois em sua própria superfície já abstrai cores e se apóia no pensamento teórico-conceitual.

Fotógrafo como caçador de símbolos culturais, que em sua composição são driblados a partir de como domina o output. Não caça processos, mas sim cenas, que magiciza e faz transcodificar sua intenção em conceitos, antes de poder transcodificá-la em imagens.

Inversão do vetor-significação: não o significado, mas o significante é a realidade. Fotografia é pós-ideológica pois há equivalência de todos os pontos de vista programados, em relação à cena a ser produzida. Seu interesse está concentrado no aparelho: quando caça é para descobrir cenas jamais vistas, no interior do aparelho. Transcodificação de conceitos que pretendem ser impressões automáticas do mundo lá fora. Imagens de conceitos, conceitos transcodificados em cena.

4 - Gesto de fotografar

Na realidade, o fotógrafo procura estabelecer situações jamais existentes antes. Quando caça na taiga, não significa que esteja procurando por novas situações lá fora na taiga: mas sua busca são pretextos para novas situações no interior do aparelho.

5 - A fotografia

A intenção é a de eternizar seus conceitos em forma de imagens acessíveis a outros, a fim de se eternizar nos outros.

A intenção programada no aparelho é a de realizar o seu programa, ou seja, programar os homens para que lhe sirvam de feed-back para seu contínuo aperfeiçoamento.

O aparelho fotográfico é um produto do aparelho da indústria fotográfica, que é produto do aparelho do parque industrial. que é produto do aparelho sócio-econômico e assim por diante. Através de toda essa hierarquia de aparelhos, corre uma única e gigantesca intenção, que se manifesta no output do aparelho fotográfico: fazer com que os aparelhos programem a sociedade para um comportamento propício ao constante aperfeiçoamento dos aparelhos.

O fotógrafo visa eternizar-se nos outros por intermédio da fotografia. O aparelho visa programar a sociedade através das fotografias para um comportamento que lhe permita aperfeiçoar-se. A fotografia é, pois, mensagem que articula ambas as intenções codificadoras. Enquanto não existir crítica fotográfica que releve essa ambiguidade do corpo fotográfico, a intenção do aparelho prevalecerá sobre a intenção humana.

Quadros devem ser apropriados para serem distribuídos: comprados, roubados, ofertados. São objetos que têm valor enquanto objetos. Prova disto é que os quadros atestam seu produtor: traços do pincel por exemplo. A fotografia, por sua vez, é multiplicável. Distribuí-la é multiplicá-la. O aparelho produz protótipos cujo destino é serem estereotipados. 

6 - A distribuição da fotografia

Seu valor está na informação que transmite. Com efeito, a fotografia é o primeiro objeto pós-industrial: o valor se transferiu do objeto para a informação. Pós-indústria é precisamente isso: desejar informação e não mais objetos. Não mais possuir e distribuir propriedades (capitalismo ou socialismo). Trata-se de dispor de informações (sociedade informática). Não mais de um par de sapato, mais um móvel, porém, mais uma viagem, mais uma escola. Eis a meta. Transformação de valores, tornada palpável nas fotografias.

A cada vez que troca de canal, a fotografia muda de significado: de científica passa a ser política, artística, privativa. A divisão das fotografias em canais de distribuição não é operação meramente mecânica: trata-se de operação de transcodificação. 

Há canais para fotografias indicativas, por exemplo livros científicos e jornais diários. Há canais para fotografias imperativas, por exemplo, cartazes de propaganda comercial e política. E há canais para fotografias artísticas, por exemplo, revistas, exposições e museus.

No canal, a intenção do fotógrafo e do aparelho se co-implicam pela mesma involução já discutida: o fotógrafo fotografa  em função de um jornal determinado, porque este lhe permite alcançar centenas de milhares de receptores e porque o paga. O fotógrafo crê estar utilizando o jornal como médium, enquanto o jornal crê estar utilizando o fotógrafo em função de seu programa. Do ponto de vista do jornal, quando a fotografia recodifica os artigos lineares em imagens, "ilustrando-os", está permitindo a programação mágica dos compradores do jornal em comportamento adequado. Ao fotografar, o fotógrafo sabe que sua fotografia será aceita pelo jornal somente se esta se enquadrar em seu programa. De maneira que vai procurar driblar tal censura, ao contrabandear na fotografia elementos estéticos, políticos e epistemológicos não previstos no programa. Vai procurar submeter a intenção do jornal à sua. Este, por sua vez, embora possa descobrir tal tentativa astuciosa, pode vir a aceitar a fotografia com o propósito de enriquecer seu programa. Vai procurar recuperar a intenção subversiva. Pois bem, o que vale para jornais, vale para os demais canais de distribuição de fotografias, uma vez que todos revelarão, sob análise crítica, a luta dramática entre a intenção do fotógrafo e a do aparelho distribuidor de fotografias.

[...] antes de seren distribuídas, as fotografias são transcodificadas pelo aparelho de distribuição, a fim de serem subdivididas em canais diferentes; somente dentro do canal, do medium, adquirem seu último significado; nessa transcodificação, cooperam tanto o fotógrafo quanto o aparelho. Este fato é silenciado pela maior parte da crítica, o que torna os aparelhos de distribuição invisíveis para os receptores das fotografias. Graças a tal crítica "funcional", o receptor da fotografia vai recebê-la de modo não-crítico. E será assim que os aparelhos de distribuição poderão programar o receptor para comportamento mágico que sirva de feed-back para seus aparelhos.

7 - De modo geral, todo mundo possui um aparelho fotográfico e fotografa, assim como, praticamente, todo mundo está alfabetizado e produz textos. Quem sabe escrever, sabe ler; logo, quem sabe fotografar sabe decifrar fotografias. Engano. Para captarmos a razão pela qual quem fotografa pode ser considerado analfabeto fotográfico, é preciso considerar a democratização do ato fotográfico.

O aparelho fotográfico assim comprado será de "último modelo": menor, mais barato, mais automático e eficiente que o anterior. O aparelho deve o aperfeiçoamento constante de modelos ao feed-back dos que fotografam. [...] Neste sentido, os compradores de aparelhos fotográficos são funcionários do aparelho da indústria fotográfica.

Quem possui aparelho fotográfico de "último modelo", pode fotografar "bem" sem saber o que se passa no interior do aparelho. Caixa preta.

Fotografar pode virar mania, o que evoca o uso de drogas. Na curva desse jogo maníaco, pode surgir um ponto a partir do qual o homem-desprovido-de-aparelho se sente cego. Não sabe mais olhar, a não ser através do aparelho. De maneira que não está face ao aparelho (como o artesão frente ao instrumento), nem está rodando em torno do aparelho (como o proletário roda a máquina). Está dentro do aparelho, engolido por sua gula. Passa a ser prolongamento automático do seu gatilho. Fotografa automaticamente.

Quem contemplar o álbum de um fotógrafo amador, estará vendo a memória de um aparelho, não a de um homem. Uma viagem para a Itália, documentada fotograficamente, não registra as vivências, os conhecimentos, os valores do viajante. Registra os lugares onde o aparelho seduziu para apertar o gatilho. [...] Quanto mais eficientes se tornam os modelos dos aparelhos, tanto melhor atestarão os álbuns, a vitória do aparelho sobre o homem.

A fotografia da guerra no Líbano em jornal mostra uma cena. Exige que nosso olhar a escrutine pelo método já discutido anteriormente. O olhar vai estabelecendo relações específicas entre os elementos da fotografia. Não serão relações históricas de causa e efeito, mas relações mágicas do eterno retorno. Por certo, o artigo que a fotografia ilustra no jornal consiste de conceitos que significam as causas e os efeitos de tal guerra. Porém o artigo é lido em função da fotografia, como que através dela. Não é o artigo que "explica" a fotografia, mas é a fotografia que "ilustra" o artigo. Este só é texto no curioso sentido de ser pré-texto da fotografia. Tal inversão da relação "texto-imagem" caracteriza a pós indústria, fim de todo historicismo.

No curso da História, os textos explicavam as imagens, desmitizavam-nas. Doravante, as imagens ilustram os textos, remitizando-os. Os capitéis românticos serviam aos textos bíblicos com o fim de desmagicizá-los. Os artigos de jornal servem às fotografias para serem remagicizados. No curso da História, as imagens eram subservientes, podia-se dispensá-las. Atualmente, os textos são subservientes e podem ser dispensados.

A fotografia está sendo manipulada como em ritual de magia. No fundo, não somos nós que a manipulamos, é ela que nos manipula. E da seguinte forma: a cena fotográfica da guerra no Líbano consiste de elementos que se relacionam significativamente. No sentido temporal, um elemento rpecede outro e pode suceder ao precedente. No sentido de superfície, um elemento dá significado a outro e recebe significado de outro. Destarte, a superfície da imagem passa a ser significativa, carregada de valores. Está plena de deuses. Mostra o que é "bom" e o que é "mau": os tanques são "maus"; as crianças são "boas"; Beirute em chamas é "infernal", os médicos de uniforme branco são "anjos". A fotografia é hierofania: o sacro nela transparece. E o que vale para esta fotografia relativa ao Líbano, vale para todas as demais. São, todas elas, imagens de forças inefáveis que giram em torna da imagem, conferindo-lhe sabor indefinível. Imagens de forças ocultas que giram magicamente. Fascinam seu receptor, sem que este saiba o que o fascina.

O receptor [...] está sob a influência do fascínio mágico da fotografia. Não quer explicação sobre o que viu, apenas confirmação. Está farto de explicações de todo tipo. Explicações nada adiantam se comparadas com o que se vê. Não quer saber sobre as causas ou efeitos da cena, porque é esta e não o artigo que transmite a realidade.

Exemplo: em fotografia de cartaz mostrando eccova de dente, o receptor reconhece o poder da cárie. Sabe que é força nefasta e compra a escova a fim de passá-la ritualmente sobre os dentes [...] o leitor comprará a escova. Está programado para tanto.

Se o funcionário estiver consciente das causas e efeitos do seu funcionamento, jamais funcionará corretamente. Se tivesse consciência histórica, como poderia comprar escovas de dente, formas opinião sobre o Líbano ou simplesmente ir ao escritório, arquivar papeladas, participar de reuniões, gozar férias, aposentar-se? A repressão da consciência histórica é indispensável para o funcionamento. As fotografias servem para reprimi-la.

No entanto, a consciência crítica pode ainda ser mobilizada. Nela, a magia programada nas fotografias torna-se transparente. A fotografia da cena libanesa em jornal não mais revelará forças ocultas do tipo "judaísmo" ou "terrorismo", mas mostrará os programas do jornal e do partido político que o programa, assim como o programa do aparelho político que programa o partido. Ficará evidente que "judaísmo" e "terrorismo" etc., constam de tais programas. A fotografia da escova de dente não mais revelará forças ocultas do tipo "cárie", mas mostrará o programa das agências de publicidade e o programa do governo. Ficará evidente que "cárie" consta de tais programas.

[...]Na realidade, são elas que manipulam o receptor para comportamento ritual, em proveito dos aparelhos. Reprimem sua consciência histórica e desviam a sua faculdade crítica para que a estupidez absurda do funcionamento não seja conscientizada. Assim, as fotografias vão formando círculo mágico em torno da sociedade, o universo das fotografias. Contemplar tal universo visando quebrar o círculo seria emancipar a sociedade do absurdo.

8 - O universo fotográfico

O universo fotográfico está em constante flutuação e uma fotografia é constantemente substituída por outra. [...] Não é a determinadas fotografias, mas justamente à alteração constante de fotografias que estamos habituados. Trata-se de novo hábito: o universo fotográfico nos habitua ao "progresso". Se de repente, os mesmos jornais aparecessem diariamente em nossas salas ou os mesmos cartazes semanalmente sobre os muros, aí sim, ficaríamos comovidos. O "progresso" se tornou ordinário e costumeiro; a informação e a aventura seriam a paralisação e o repouso.

Quanto à sua estrutura profunda, o universo fotográfico é um mosaico. Muda constantemente de aspecto e cor, como mudaria um mosaico onde as pedrinhas seriam constantemente substituídas por outras. [...] funcionando como quebra-cabeças, como jogo de permutação entre elementos claros e distintos.

[...] o gesto de fotografar, o qual revelou-se composto de pequenos saltos.Se analisarmos a estrutura quântica do universo fotográfico, encontraremos explicação mais profunda para o caráter saltitante de tudo que se refere à fotografia. Descobriremos que tal estrutura é típica de todo movimento do aparelho.

Trata-se de aparelhos para "pensar" cartesianamente. Segundo o modelo cartesiano, o pensamento é um colar de pérolas claras e distintas. Tais pérolas são os conceitos e pensar é permutar conceitos segundo as regras do fio. Pensar é manipular ábaco de conceitos. Todo conceito claro e distinto significa um ponto lá fora no mundo das coisas extensas (res extensa).  Se conseguíssemos adequar a cada ponto lá fora um conceito da coisa pensante, seríamos oniscientes. E também onipotentes, porque, ao permutarmos os conceitos, poderíamos simbolicamente permutar os pontos lá fora. Infelizmente, tal onisciência e onipotência não são possíveis, porque a estrutura da coisa pensante não se adequa à da coisa extensa. Nesta os pontos se confundem uns com os outros, con-crescem, fazendo com que a coisa extensa concreta. Na coisa pensante, há intervalos entre os conceitos claros e distintos. A maioria dos pontos escapa por tais intervalos. Descartes esperava superar esta dificuldade graças à geometria analítica e à ajuda divina. Não conseguiu fazê-lo. Os computadores, estes sim, conseguem o feito, graças a duas estratégias: reduzem os conceitos cartesianos a dois: "0" e "'" e "pensam" em bits, binariamente; depois, programam universos adequados a esse tipo de pensamento. Em tais universos, os computadores passaram a ser, de fato, oniscientes e onipotentes. O universo fotográfico é um exemplo. A cada fotografia individual, corresponde um conceito claro e distinto no programa do aparelho produtor desse universo.  Aparelho produtor que não é necessariamente um computador, mas que funciona segundo a mesma lógica.

Eis como se produz o universo fotográfico: homens constroem aparelhos segundo modelos cartesianos; em seguida, os alimentam com conceitos claros e distintos (atualmente existem aparelhos "de segunda" geração que podem ser construídos e alimentados por outros aparelhos e os homens vão desaparecendo para o além do horizonte); os aparelhos passam a permutas os conceitos claros e distintos inscritos no seu programa; fazem-no ao acaso, automaticamente, "pensam" idiotamente; as permutações que assim se formam são transcodificadas em imagens e fotografias; a cada fotografia, corresponderá determinada permutação de conceitos no programa do aparelho, e a cada permutação corresponderá uma determinada fotografia; haverá relação biunívoca entre o programa do aparelho e o universo da fotografia; o aparelho será onisciente e onipotente em tal universo. Mas terá pago um preço: os vetores de significação se inverteram. Não é mais o pensamento que significará a coisa extensa; é a fotografia que significa um "pensamento". Resta a pergunta: que significa o pensamento programado.

[...] o conceito fundamental de programa: jogo de permutação entre elementos claros e distintos.
Tal jogo obedece ao caso, que por sua vez, vai se tornar necessidade. Exemplo extremamente simples de programa é um jogo de dados: permuta os elementos "1" a "6" ao acaso. Todo lance individual é imprevisível. Mas a longo prazo, o "1" será realizado em cada sexto lance. Necessariamente. Isto é: todas as virtualidades inscritas no programa, embora se realizem ao acaso, acabarão se realizando necessariamente. Se guerra atômica estiver inscrita em determinados programas de determinados aparelhos, será realidade, necessariamente, embora aconteça ao acaso. É neste sentido sub-humano cretino que os aparelhos são oniscientes e onipotentes em seus universos.

O universo fotográfico, no estágio atual, é realização casual de algumas das virtualidades programadas em aparelhos. Outras virtualidades se realizarão ao acaso, no futuro. E tudo se dará necessariamente. O universo fotográfico muda constantemente, porque cada uma das situações corresponde a determinado lance de um jogo cego. Cada situação do universo fotográfico significa determinada permutação dos elementos inscritos no programa dos aparelhos, o que permite definirmos o universo das fotografias: 1. surgiu de um jogo programático e significa um lance de tal jogo; 2. o jogo não obedece a nenhuma estratégia deliberada; 3. o universo é composto de imagens claras e distintas, as quais ão significam, como se pretende, "situações lá fora no mundo", mas determinadas permutações de elementos do programa; 4. tais imagens programam magicamente a sociedade para um comportamento em função do jogo dos aparelhos. Resumindo: o universo fotográfico é um dos meios do aparelho para transformar homens em funcionários, em pedras do seu jogo absurdo.

Estar no universo fotográfico implica viver, conhecer, valorar  e agir em função de fotografias. Isto é: existir em mundo-mosaico. Vivenciar passa a ser recombinar constantemente experiências vividas através de fotografias. Conhecer passa a ser elaborar colagens fotográficas para se ter "visão de mundo". Valorar passa a ser escolher determinadas fotografias como modelos de comportamento, recusando outras. Agir passa a ser comportar-se de acordo com a escolha. Tal forma de existência passa a ser quanticamente analisável. Toda experiência, todo conhecimento, todo valor, toda ação consiste de bits definíveis. Trata-se de existência robotizada, cuja liberdade de opinião, de escolha e de ação torna-se observável se confrontada com os robôs mais aperfeiçoados.

A hipótese aqui defendida é esta: a invenção do aparelho fotográfico é o ponto a partir do qual a existência humana vai abandonando a estrutura do deslizamento linear, próprio dos textos, para assumir a estrutura de altear quântico, próprio dos aparelhos. O aparelho fotográfico, enquanto protótipo, e o patriarca de todos os aparelhos. Portanto, o aparelho fotográfico é a fonte da robotização da vida em todos os seus aspectos, desde os gestos exteriorizados ao mais íntimo dos pensamentos, desejos e sentimentos.

O universo fotográfico é produto do aparelho fotográfico, que por sua vez, é produto de outros aparelhos. Tais aparelhos são multiformes: industriais, publicitários, econômicos, políticos, administrativos. Cada qual funciona automaticamente. E suas funções estão ciberneticamente coordenadas a todas as demais. O input de cada um deles é alimentado por outro aparelho; o output de todo aparelho alimenta outro. Os aparelhos se programam mutuamente em hierarquia envelopante. Trata-se, nesse complexo de aparelhos, de caixa preta composta de caixas pretas. Um supercomplexo de produção humana. Produzido no decorrer dos séculos XIX e XX, pelo homem. E homens continuam a produzi-lo. De maneira que parece óbvio como criticar tudo isso: basta descobrir as intenções humanas que levaram a produção de aparelhos.

Trata-se de um método de crítica sedutor, por duas razões diferentes. Em primeiro lugar, dispensa o crítico de mergulhar no interior das caixas pretas. Basta concentrar-se sobre o input que é a decisão humana. Em segundo lugar, o método pode recorrer a critérios já bem elaborados, por exemplo, os marxistas. Eis o resultado de tal crítica: os aparelhos foram inventados para emancipar o homem da necessidade do trabalho; trabalham automaticamente para ele. O aparelho fotográfico produz imagens automaticamente, e o homem não mais precisa movimentar pincéis esforçando-se para vencer a resistência do mundo objetivo. Simultaneamente, os aparelhos emancipam o homem para o jogo. Ao invés de movimentar o pincel, o fotógrafo pode brincar com o aparelho. No entanto, certos homens se apoderam dos aparelhos desviando a intenção de seus inventores em seu próprio proveito. Atualmente os aparelhos obedecem a decisões de seus proprietários e alienam a sociedade. Quem afirmar que não há intenção dos proprietários, por trás dos aparelhos, está sendo vítima dessa alienação e colabora objetivamente com os proprietários dos aparelhos.

Quanto ao universo fotográfico como um todo, estará decifrado somente quando descobrirmos a que interesses inconfessos serve.

Infelizmente, essa crítica "clássica" jamais ferirá o essencial: a automaticidade dos aparelhos. Justamente o ponto que merece ser criticado. Não há dúvida que os aparelhos foram originalmente produzidos por homens. Revelaram portanto, sob análise, intenções humanas e interesses humanos, como acontece com todo produto da cultura. Que intenção humana e que interesse humano são esses? Precisamente chegar a algo que dispensa futuras intenções humanas e futuras intervenções humanas. O propósito por trás dos aparelhos é torná-los independentes do homem. Essa autonomia resulta, segundo a própria intenção, em situação onde o homem é eliminado. Mas eliminado por método que não foi previsto pelos inventores dos aparelhos, esse jogo casual com elementos, passou a ser de tal forma rico e rápido, que ultrapassa a competência humana.

Nenhum homem pode mais controlar o jogo. E quem dele participar, longe de o controlar, será por ele controlado. A autonomia dos aparelhos levou à inversão de sua relação com os homens. Estes, sem exceção, funcionam em função dos aparelhos.

Doravante, nenhuma decisão humana funciona. Todas as decisões passam a ser funcionais, isto é, tomadas ao acaso, sem propósito deliberado. Os conceitos programados nos aparelhos, que originalmente significavam intenções humanas, não mais as significam. Passaram a ser auto-significantes. São vazios os símbolos com os quais joga o aparelho. Este não funciona em função de intenção deliberada, mas automaticamente, girando em ponto morto. E todas as virtualidades inscritas e seu programa, inclusive a de produzir outros aparelhos e a de autodestruir-se, se realizarão necessariamente.

[...] de forma nenhuma são (os aparelhos) super-humanas, Pelo contrário, são pálidas simulações do pensamento humano. O dever de toda crítica dos aparelhos é mostrar a cretinice infra-humana dos aparelhos. Mostrar que se trata de vassouras invocadas por aprendiz de feiticeiro que traz, automaticamente, água até afogar a humanidade, e que se multiplicam automaticamente. Seu intuito deve ser exorcizar essas vassouras, recolocando-as naquele canto ao qual pertencem, conforme a intenção inicial humana. Graças a críticas deste tipo é que podemos esperar transcender o totalitarismo robotizante dos aparelhos que está em vias de se preparar. Não será negando a automaticidade dos aparelhos, mas a encarando, que podemos esperar a retomada do poder sobre os aparelhos.

[...] como as fotografas são cenas simbólicas, elas programam a sociedade para um comportamento mágico em função do jogo. Conferem significado mágico à vida da sociedade, tudo se passa automaticamente, e não serve a nenhum interesse humano. Contra essa automação estúpida, lutam determinados fotógrafos, ao procurarem inserir suas intenções humanas no jogo. Os aparelhos, por sua vez, recuperar automaticamente tais esforços em proveito de seu funcionamento. O dever de uma filosofia da fotografia seria o de desmascarar esse jogo.

9 - A urgência de uma filosofia da fotografia

definição de fotografia: imagem produzida e distribuída por aparelhos segundo um programa, a fim de informar receptores. [...] ampliar a definição da fotografia da seguinte maneira: imagem produzida e distribuída automaticamente no decorrer de um jogo programado, que se dá ao acaso que se torna necessidade, cuja informação simbólica, em sua superfície, programa o receptor para um comportamento mágico.

A definição tem curiosa vantagem: exclui o homem enquanto fator ativo e livre. Portanto, é definição inaceitável. Deve ser contestada, porque a contestação é a mola propulsora de todo pensar filosófico.

Chão da circularidade. Imagens são superfícies sobre as quais circula o olhar. Aparelhos são brinquedos que funcionam com movimentos eternamente repetidos. Programas são sistemas que recombinam constantemente os mesmos elementos. Informação  é epiciclo negativamente entrópico que deverá voltar à entropia da qual surgiu. Quando refletimos sobre os quatro conceitos-chave, estamos no chão do eterno retorno. Abandonamos a reta, onde nada se repete, chão da história, da causa e efeito.

Os conceitos-chaves sustentadores da fotografia já estão espontaneamente encrustados em nosso pensar. Darei como único exemplo, a cosmologia atual.

A cada instante, o universo é situação surgida ao acaso, que levará necessariamente à morte "térmica", de forma que o universo é aparelho produtor de caos. A nossa própria cosmologia não passa imagem desse aparelho. Em consequência, tal cosmovisão deve descartar toda explicação causal e recorrer a explicações formais, funcionais. Os quatro conceitos-chave da fotografia são também os da cosmologia.

A tese não é muito nova. Sempre se supôs que os instrumentos são modelos de pensamento. O homem os inventa, tendo por modelo seu próprio corpo. Esquece-se depois do modelo, "aliena-se", e vai tomar o instrumento como modelo do mundo, de si próprio e da sociedade. Exemplo clássico dessa alienação é o século XVIII. O homem inventou as máquinas, tendo por modelo seu próprio corpo, depois tomou as máquinas como modelo do mundo, de si próprio e da sociedade. Mecanismo. No século XVIII, portanto, uma filosofia da máquina teria sido a crítica de toda a ciência, toda política, toda psicologia, toda arte. Atualmente, uma filosofia da fotografia deve ser outro tanto. Crítica do funcionalismo.

Reformulemos o problema: constata-se em nosso entorno, como os aparelhos se preparam a programar, com automação estúpida, as nossas vidas; como o trabalho está sendo assumido por máquinas automáticas, e como os homens vão sendo empurrados rumo ao setor terciário, onde brincam com símbolos vazios; como o interesse dos homens vai se transferindo do mundo objetivo para o mundo simbólico das informações: sociedade informática programada; como o pensamento, o desejo e o sentimento vão adquirindo caráter de jogo em mosaico, caráter robotizado; como o viver passa a alimentar aparelhos e por eles ser alimentado. O clima de absurdo se torna palpável. Aonde, pois, o espaço para a liberdade?

[...] seu pensamento, desejo e sentimento tem caráter fotográfico, isto é, de mosaico, caráter robotizado; alimentam aparelhos e são por eles alimentados.

Várias respostas apareceram: 1. o aparelho é infra-humanamente estúpido e pode ser enganado; 2. os programas dos aparelhos permitem introdução de elementos humanos não-previstos; 3. as informações produzidas e distribuídas por aparelhos podem ser desviadas da intenção dos aparelhos e submetidas a intenções humanas; 4. os aparelhos são desprezíveis. Tais respostas, e outras possíveis, são redutíveis a uma: liberdade é jogar contra o aparelho. E isto é possível.

E quem lê história da fotografia (escrita por fotógrafo ou crítico), verifica que os fotógrafos crêem dispor de um novo instrumento para continuar agindo historicamente. Crêem que, ao lado da história da arte, da ciência e da política, há mais história: a da fotografia. Os fotógrafos são inconscientes da sua práxis. A revolução pós-industrial, tal como se manifesta, pela primeira vez no aparelho fotográfico, passou despercebida pelos fotógrafos e pela maioria dos críticos de fotografia. Nadam eles na pós-indústria, inconscientemente.

(Os fotógrafos experimentais) Tentam, conscientemente, obrigar o aparelho a produzir imagem informativa que não está em seu programa. Sabem que sua práxis é estratégia dirigida contra o aparelho. Mesmo sabendo, contudo, não se dão conta do alcance de sua práxis. Não sabem que estão tentando dar resposta, por sua práxis, ao problema da liberdade em contexto dominado por aparelhos, problema que é, precisamente, tentar opor-se.

Urge uma filosofia da fotografia para que a práxis fotográfica seja conscientizada. A conscientização de tal práxis é necessária porque, sem ela, jamais captaremos as aberturas para a liberdade na vida do funcionário dos aparelhos. Em outros termos: a filosofia da fotografia é necessária porque é reflexão sobre as possibilidades de se viver livremente num mundo programado por aparelhos. 

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