segunda-feira, 30 de maio de 2016

A vacuidade radiante, ou a natureza mágica e onírica que têm todas as coisas.

Desenvolvimento e purificação da percepção

A realidade como a conhecemos - sólida, fixa e estável - é uma ilusão. Nisto não se faz distinção: tanto a vigília quanto o sonho são irreais.

A vigília e o sonho estão em um mesmo continuum.

O mundo se assemelha ao reflexo num espelho, à lua na água.

Desde o momento de sua aparição, a natureza está livre de elaboração. A causalidade de surgimento e interrompimento aparecem como um sonho, como Maia, uma ilusão óptica que desvela a irrealidade e insustentabilidade do mundo.

Método para avançar

O discípulo deve pensar, a todo momento: "Agora é meio-dia, agora estou atravessando o pátio, agora me encontro com o mestre", e ao mesmo tempo deve pensar que o meio-dia, o pátio e o superior são irreais, são tão irreais como ele próprio e seus pensamentos.

Devemos alcançar a compreensão de que o mundo é uma aparição.

Como prática principal, medita da seguinte maneira:

O mundo exterior, suas montanhas e vales, pessoas e cidades e seres vivos,
compostos de terra, água, ar, fogo e espaço, todas as formas, sons, odores, sabores e sensações
os cincos objetos sensoriais e o mundo interior da mente-corpo e sua consciência sensorial,
 toda a experiência devem ser atendidos continuamente como um sonho.

Objetivo. Fundamento constante e real

O aspecto objetivo é refutado, e o sujeito retira-se quando a mente se aproxima das situações "como se fossem um sonho", sem poder encontrar algo substancial ao qual se aderir, então se "submerge em um espaço todopenetrante como o céu.... Desprovido de toda atividade mental compulsiva, emerge como espontânea e simples qualidade vazia."

A mente volta-se como o espaço em toda sua vastidão e vacuidade. Ao descobrir que estamos sonhando podemos viajar imediatamente a paraísos da mente.

Ontologia

Os fenômenos não têm existência verdadeira mas aparecem a todas as pessoas. Ver as aparições como mágicas, e assim abandonar o apego à existência como real, então, oferece a habilidade de alcançar a liberação. A delícia do espaço livre que conhece o grande espetáculo da existência sem formar nenhuma relação objetificante. Livre da alucinação de crer em sua realidade.

Caminho

Para estabelecer este delicioso modo de percepção, no qual nada se cristaliza, nada se coagula - o modo da contemplação pura, é sumariamente útil repetirmos todos os dias cada vez que descobrimos que estamos nos enrolando com uma situação, que identificamos um fenômeno ou um conceito no qual simplesmente cremos em sua solidez e irreversibilidade das coisas: "isto é um sonho". E que alívio que será!

É assim: todos os fenômenos são inexistentes, mas aparentam existir e são estabelecidos como várias coisas.

O sonho e a lucidez

Nossa experiência desperta é tão ilusória e fantástica como nossos sonhos. Esta é a perspectiva da vacuidade. O que significa que "os fenômenos não existem por sua própria natureza, nem subjetiva nem objetivamente...existem interdependentemente". Nos sonhos isto nos está muito claro, uma montanha, uma pessoa, um evento que acontece no "drama onírico" é claramente dependente de nossa imaginação, de nossas recordações, de eventos que vivemos anteriormente. Têm uma existência interdependente, não uma existência inerente (em si mesma).

O budismo nos diz que também tudo o que aparece na vigília são criações da mente e têm uma existência interdependente. E, da mesma maneira que é útil cobrar lucidez durante os sonhos para não sofrer por eventos que ocorram, ainda que estes evanesçam quando chega o amanhecer, alguns dos quais podem nos levar ao mais puro terror, é igualmente necessário obter um estado de lucidez na vigília para que assim não soframos por eventos que ocorrem, os quais também se evanescerão um dia.

O "eu" não é uno, mas interdependente

Quê ou o quê é este eu? Se aponta ao seu corpo, bom, pois isso é o "corpo", não o "eu". Usualmente pensamos que somos mais que somente nosso corpo, porque podemos dizer que o "eu" está no corpo e o "eu" é superior ao corpo... Mas se o "eu" está no corpo, onde no corpo é que está? Se aponta ao seu peito e diz "está em meu coração" pode estar seguro de que nenhum cardiologista visualizou um "eu" ali. Se diz que seu "eu" está no cérebro - o centro de onde se assume o centro onde reside o pensamento e o espaço central entre os seus principais órgãos sensoriais - tampouco nenhum neurocirurgião avisto o "eu" ali.

É possível no entanto que você sustente que isto é uma redução muito simplista e que existimos como algo mais completo e sofisticado - algum tipo de padrão ou coleção de partes corporais e pensamentos produzidos pelos neurônios, memórias e emoções. Mas ao afirmar isto teremos regressado à ideia budista de interdependência.

Aos cientistas de laboratório, positivistas e racionalistas: o que observamos não é a natureza em si mesma, mas sim a natureza exposta a nossos métodos de interrogação.

Apontamento conclusivo

Isto pode nos levar à conclusão de que o eu não está em nenhuma parte da existência porque está necessariamente em todas as partes, deve ser não-local, deve estar distribuído equitativamente sem um centro e desvinculado de todos as trocas e sucessos que acontecem.

A vacuidade, conceitualmente suscetível a ser confundida com o nada, é de fato um reservatório de infinitas possibilidades.

A identificação com um eu é o que impede que notemos a irrealidade das coisas, posto que ao concebermos um eu estamos necessariamente também construindo um edifício mental que nos separa de todas as demais coisas: ser um eu individual é não ser todo o mais. É o eu que crê no mundo dos objetos. E para seguir existindo, desesperadamente em um instinto de sobrevivência, nos faz crer que estes objetos, dos quais obtém sua identidade por diferenciação, são reais. Só assim o eu também é real.

Devido à condição predominante da percepção do "eu" como interno, o reino dos fenômenos manifesta-se como um algo que é outro. 

Todas as aparências sensíveis não são mais que o espaço base do ser, e são únicas com o espaço base em si mesmo, como os reflexos de todos os planetas e estrelas no oceano, que não são mais que o próprio oceano.

Gautama que chegou a ser o Buda, isto é, o Desperto, o Lúcido - à diferença de nós, que estamos dormindo ou que estamos sonhando este grande sonho que é a vida.


Traduzido e adaptado de http://pijamasurf.com/2016/05/ejercicios-de-percepcion-espiritual-2-recuerda-constantemente-esto-es-un-sueno/

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Ontem,
de tão entusiasmado,
explodi em êxtase e de súbito fiquei triste.

Hoje,
de tão desencantado,
enchi-me de vazio e num lampejo fiquei feliz.

Quê são as sensações?

Estou cansado de as sentir...

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Alguns excertos (poesia e prosa) para serem pubicados

Com as palavras eu consigo
estar longe mas também ser próximo;
desenvolver velocidade sem acelerar;
pular alto e me manter suspenso no céu;
saltar em nuvens e não estar em sonho.

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Caudalosas nuvens pairam estáticas e douradas sobre nossas cabeças.
O entardecer lança fachos de sombra fosca sobre o cruzamento.

Vejo seres humanos como quem vê espíritos encarnados, com membros e órgãos, polegares opositores e potencialidades infinitas.
Acorrentados em torres de silêncio por leis de mercado que não podem controlar.

Vítreos globos oculares espreitam confusos. A lotação vem lotada de trabalhadores.

Trabalham por quê?; para quem e para quê?

Que querem eles?

Que hei eu de querer?

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A geometria e a Física, a arquitetura das cidades, a mecânica e, depois, os navios não foram idealizadas por quem estava entabulando conversa,  e sim por aqueles que passavam o tempo, absortos, cultivando pensamentos em seus universos íntimos e solitários.

Diante desta constatação fica destruído o constrangimento de se precisar bater papo. Tão natural como a rosa escarlate que apresenta cor, ignóbil como a pegada no pó da estrada,  e sórdido como o abanar de rabo do vira-lata encardido, é o ser humano falar palavras.

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É para o teu bem, querida
Que dedos meus sejam para acariciar
Tuas intumescidas pétalas de carne
e não para dedilhar as cordas da guitarra elétrica.

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Ontem,
de tão entusiasmado,
explodi em felicidade e de súbito fiquei triste.

Hoje,
de tão desencantado,
enchi-me de vazio e num lampejo fiquei feliz.

Quê são as sensações?

Estou cansado de as sentir...

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As pessoas existem como rochas.
Esculpidas na carne pelo Acaso,
compostas de massa de matéria
com fisionomia natural
e alguma personalidade.

Nascem assim, são assim.

E eu as vejo como quem observa paisagens
ou Universos particulares.
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O sorriso que há em tua face não é teu
pois tu não és de ti própria
mas sim de Deus.

Diante de teus olhos eu amo não a ti
mas à Natureza, que é bela.

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Um instrumental gajo de minha idade
ontem veio a mim e me disse
"eu quando criança enforcava gansos,
era cruel mas me arrependo"

lembrei-me com memória desbotada
de tardes evanescidas
em que meu pai e minha mãe olhavam de longe
correndo apavorada a criança deles
no campo largo dos parques infantis
com mãos ao alto fugindo de gansos hostis
que grasnavam e intimidavam e mordiam no saco.

não posso m'arrepender, pois continuo assim: covarde e com medo.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Diário de leitura: "Caminho de Pedras" de Rachel de Queiroz

"A primeira voz feminina a marcar presença no processo do romance moderno."

- Mas é muito justo que a gente deseje boas mulheres! Por que não? É um dos privilégios do burguês, as mulheres; tomam todas, as melhores, bem tratadas, bem cheirosas. Para nós é o rebotalho... E o Paulino tem razão: queremos ter e ainda havemos de ter boas mulheres!

-Mas você fala de mulher como de uma presa de guerra - atalhou Filipe. - As mulheres, e as melhores delas, virão para nós, naturalmente. Mas, não assim como você quer, como uma posta de carne arrancada da goela do burguês. E sim por elas mesmas, porque quererão, porque se nós desejamos mulheres, elas também desejam homens e nesse tempo nós é que seremos homens.

Ainda vermelho, ainda mudo de raiva, Paulino balançava a cabeça, apoiando, sentindo-se justificado. Roberto concordou:

- Tem que ser assim. Mas você vê, é tão difícil eliminar os instintos da rapinagem, de avança que, mesmo nós, ainda sentimos diante de mulher...

- Mas é fome, a desgraçada fome rugindo! - gritou Nascimento. - Nós vivemos recalcados, esfomeados. Olhem, essas moças todas passeando: querem casar, mas não com um de nós; e ficam assim, cada uma na sua estrela, esperando um noivo. E nós nunca poderemos ser os noivos! E vamos cavar aí, sabe Deus que misérias...

E apontava os grupos de moças, histérico:

-Olhem, é tudo donzela, tudo é virgem! Muitas vão murchando, secando, sempre donzelas, sempre virgens!... E a gente tem que ir em grupo, para a Rua do Chafariz... Não é uma injustiça?

-Injustiça também para elas, que têm direito de viver e acabam ficando logradas. Mas você tem um modo de reclamar que parece que é só o seu direito que sofre. Quem ouve o que você diz, tem a impressão de que a justiça está apenas em haver mulheres para o seu prazer.[...]

-Meninos, vamos pensar em outra coisa, falar em política. Senão, daqui a pouco estamos todos aí por esses becos, gastando os derradeiros vinténs...

Não queria pensar nas conversas dos outros. Antes queria ver-se livre deles e pensar em si mesmo - pensar em alguma mulher: vontade, por exemplo, de recordar a conversa do café, com Noemi. Esquecer as coisas sérias que poderia haver a separá-los: o marido, o filhinho que tinha dor de ouvido, o amor dela pelos dois, os deveres. Lembrar apenas o que um homem qualquer pode guardar de uma mulher moça que lhe passou pelo caminho: a risada clara, os seus dentes brancos, o brilho alegre dos olhos inteligentes e aquele cabelo macio e cheiroso que a todo instante ela empurrava, impaciente, para trás das orelhas. Vontade de conversar com ela, agora; de vê-la ali, tomando café com os outros, segurando a xícara no ar, sem beber, como era do seu jeito, sorrindo. Dizer-lhe coisas maliciosas sobre os outros, para vê-la sorrir mais, sorrir como uma menina alegre. Falar-lhe baixo, senti-la próxima e amiga.

João Jaques, nesse momento, bateu-lhe no ombro: [...]

Roberto o seguia naquele momento de alma aberta, num impulso real de amizade, nessa serena confiança com dois que homens de coração limpo se dão as mãos e caminham juntos, como irmãos.

[...]

-Conversa. Não me importo com isso. Não quero saber mais de nada. E você só se mete nessa bagunça porque eu não mando na senhora.

-Felizmente!

-É livre! Pois eu é que não sou mais trouxa. E, por favor, não me converse mais nesses assuntos. Faça o que quiser, mas me deixe.

[...]

-E eu já disse: é melhor não falar mais nisso. Você se governa, faça como achar bom. E por mim, me deixe em paz.

[...]

-Pois eu acho isso tudo histerismo. E improdutivo. O que eles combatem na gente, o que os choca, é o espírito que a gente adquiriu na leitura, no meio onde vivemos, a mentalidades que fomos formando desde meninos e que o impulso sentimental que nos arrastou...

Filipe retificou, imediatamente:

- O impulso intelectual...

-...Pois seja, intelectual...Que o impulso intelectual que nos levou à revolução não pôde controlar inda. E isso não vai embora com a roupa...

[...]

Tinha sono, e ao tirar os sapatos ia lembrando a conversa de Roberto, aquilo do impulso sentimental, do enternecimento. Por que é que os homens se enternecem? Sua mãe, por exemplo, não se enternecia nunca. O toucinho era fino como papel, a farinha sem coculo, não saía um tostão fiado.

Mas quando ele era pequeno, ela lhe beijava os pés e chamava de "meu filhinho". Dizia ela agora que "ter pena é luxo de rico"... Ou luxo de doido...

Sim - por que negar a si mesmo? - não fora a fria lógica de quem estuda que o levara àquelas caminhos. Foi ternura, foi desgosto, foi o impulso sentimental - que eles agora desprezavam tanto. O "luxo de doido" de que falava sua mãe...

[...] Esquisito, o amor. Parece uma luta, a gente parece inimigos. Vontade de possuir, de mandar, de dominar. Desconfiança. Fiscalizando, esmiuçando nuanças de voz, entonações, olhares. Tudo fica intoxicado, doentio. Entre Roberto e ela já não havia mais hiatos de paz, de amizade, de camaradagem serena. Foi-se embora isso tudo, assim que se disseram as primeiras palavras de amor. Hoje era só aquela tensão, aquela necessidade recíproca e angustiosa de se verem, aquela força bruta que a atirava para os braços dele com os lábios trêmulos e o coração quase parando.

[...]

E um imenso cansaço de falar tomou-o todo, um desejo imperioso de repouso e de amor.

Ela não se rendia, nos seus olhos brilhava um fogo inimigo, havia palavras de protesto, de ofensa, na boca cujos dentes cerrados mordiam os beiços com força. Evadia-se dele, era claro, a alma dela corria toda e abertamente para o outro. Mas o corpo ainda estava ali, o corpo moreno, de carnes duras, perfumadas, cujo mistério não se perdera ainda, passados embora tantos anos. Corpo de mulher, sozinho e meio nu, na intimidade do quarto.

E por que se agarrou àquela corpo, se a alma da mulher era inimiga e fugitiva? Talvez porque era só o que dela lhe restava. Só o que ainda tinha da companheira, aquele corpo que a princípio se debateu com força em seus braços, aos poucos cedeu ao seu desesperado esforço de renovar, na intensidade da sensação comum, o contato das almas que não queriam mais se entender uma com a outra.

Mas, passado o cansaço do amor, afastaram-se um do outro, envergonhados e estranhos, mais estranhos do que antes, do que nunca.

Ela ainda disse, quase a medo, com pudor da alusão àquilo que era melhor esquecer, hoje que eram quase como desconhecidos:

-Você está vendo que até isso é inútil?

[...]

Os homens dão valor demais ao amor. E principalmente a uma mulher. Por que ir embora, ficar infeliz? Por que não abrir mão daquela mulher, simplesmente, sem tragédia, procurar reconstituir a vida com outra qualquer? Por que não perdoar, não continuar amigo? Não, só porque a mulher gostou de outro, acontecia logo um irremediável.

Tolice, João Jaques. Não fui culpada. Não tive intenção de lhe envergonhar nem de lhe rebaixar. Tenho muita pena, uma pena horrível, que estraga tudo. E saudade. [...] Saudade, João Jaques.


sexta-feira, 6 de maio de 2016


Mais 996 e, quem sabe?, eu me desenvolvo num gênio. Compromisso sério com a psicodelia!

Gênio, não, porra! apenas se desenvolva numa pessoa boa - sem pretensiosidade!

quarta-feira, 4 de maio de 2016

alguns trechos das últimas páginas de "As Ondas", de Virginia Woolf

"- Sim, mas depois de algum tempo ocorre algo diferente. Pode ser que certa noite algo na aparência da sala, no arranjo das cadeiras, sugira isso. Parece confortável desabar num sofá de canto para olhar, escutar. Depois, dois vultos de costas para a janela aparecem diante dos ramos de uma árvore que se espraia. Com um toque de emoção, sentimos: "Ali há vultos sem feições, trajados de beleza." Na pausa que segue enquanto as vibrações se espalham, as jvoem com quem deveríamos estar conversando diz a si mesma: "Ele é um velho." Mas está enganada. Não é a idade; é que a gota tombou; outra gota. O tempo deu outra sacudidela na disposição das coisas. E saímos de rastros do arco de folhas pendentes, para um mundo mais amplo. A verdadeira ordem das coisas - esta é a nossa perpétua ilusão - aparece agora. Assim, por um momento, numa sala de estar, nossa vida se ajusta à majestosa marcha do dia através do céu."

"Se tenho de esperar, leio; se acordo na noite, apalpo a prateleira em busca de algum livro. Inchada, aumentando perpetuamente, existe em minha cabeça uma vasta acumulação de assuntos não registrados. Vez por outra abro um volume, pode ser Shakespeare, talvez uma anciã chamada Peck; e digo a mm mesmo, fumando um cigarro na cama: "Isto é Shakespeare. Aquilo é a Peck" - com uma segurança de reconhecimento e um choque de consciência interminavelmente deliciosos, embora não possam ser divulgados." 


"[...] e depois caíamos num daqueles silêncios que vez por outra se interrompem por raras palavras, como uma barbatana a erguer-se em desertos de silêncio; e depois a barbatana, o pensamento, recaía nas profundezas, espalhando em torno uma pequena ondulação de satisfação, de contentamento."

"Então parti, e Jinny, sem futuro nem especulação, mas respeitando o momento, com perfeita integridade chicoteou seu corpo, empoou o rosto (amei-a por isso) e acenou-me parada na porta, com a mão nos cabelos para que o vento não os despenteasse, gesto pelo qual a respeitei, como se confirmasse nossa resolução - não deixaríamos os lírios crescerem."

"[...] Enquanto ele escovava os fios de cabelo de meu casaco, tive dificuldade em assegurar-me de sua identidade, e depois, brandindo minha bengala, fui até o Strand, e evoquei, para servir-me de oponente, a imagem de Rhoda, sempre tão furtiva, sempre com medo nos olhos, sempre em busca de algum pilar no deserto, para descobrir aonde fora; ela se matara. 'Espere', disse eu, colocando em imaginação (assim nos ligamos aos nossos amigos) o braço no dela. 'Espere até esses ônibus passarem. Não atravesse a rua tão perigosamente. Estes homens são seus irmãos.' Persuadindo-a, eu também persuadia minha própria alma. Pois isto não é uma vida só; nem sempre sei se sou homem ou mulher, Bernard ou Neville, Louis, Susan, Jinny ou Rhoda - tão estranho o contato de um com o outro."

"[...] Pensei em como Louis haveria de subir aquelas escadas com seu terno elegante, bengala na mão e passo anguloso, atitude meio desligada. Com seu sotaque australiano ('Meu pai, banqueiro em Brisbane'), pensei que ele viria para essas cerimônias com mais respeito do que eu, que ouço há mil anos as mesmas cantigas de ninar. Sempre que entro, impressionam-me as rosas polidas; os bronzes lustrados; o oscilar e o salmodiar enquanto a voz de um menino lamenta-se em torno da cúpula como um pombo perdido e errante.  O repouso e a paz dos mortos me impressionam - guerreiros em descanso debaixo de seus antigos pendões. Depois zombo dos floreios e dos absurdos de alguma tumba cheia de volutas; e as trombetas e as vitórias e os brasões e a certeza tão sonoramente repetida da ressurreição, da vida eterna. Meu olho errante e inquisidor mostra-me então uma criança varada de terror; um aposentado arrastando os pés; ou as homenagens de exaustas balconistas carregando Deus sabe que dilema em seus pobres peitos magros, para buscarem consolo nesta hora do rush. Vagueio e olho e admiro-me, e por vezes, furtivamente, tento elevar-me no raio de luz da oração de alguma outra pessoa, até a cúpula, e para fora, mais além, para onde quer que estejam indo. Mas depois, como um pombo perdido e lamentoso, vejo-me falhar, esvoaçar, descer e pousar em alguma gárgula bizarra, um nariz corroído ou absurda pedra tumular, com humor, com espanto, e novamente observo os turistas passando com seus guias, enquanto a voz do menino se alça para a cúpula, e vez por outra o órgão se abandona a um momento de triunfo, elefantino. Como, indaguei, Louis nos acolheria a todos? Como nos haveria de confinar, de nos tornar um só, com sua tinta vermelha e sua pena de ponta muito fina? A voz enfraquecia na cúpula, chorosa.

"Começo agora a esquecer; começo a duvidar da fixidez das mesas, da realidade do aqui e agora, a bater de leve os nós dos dedos na beira de objetos aparentemente sólidos e a dizer: "Vocês são rijos?" Vi tantas coisas diferentes, fiz tantas frases diferentes. Perdi, no processo de comer e beber e esfregar meus olhos em superfícies, aquela concha tênue e dura que envolve a alma, que, na juventude, nos encerra - daí a ferocidade, os golpes dos implacáveis bicos da juventude. E agora indago: "Quem sou eu?" Sou todos eles? Sou um e distinto? Não sei. [...]"

"Mas não mais. Agora, esta noite, meu corpo se ergue, camada sobre camada, como algum templo cheio de frescor cujo assoalho é coberto de tapetes, e murmúrios se se erguem, e os altares estão em pé fumegando; mas mais acima, aqui na minha serena cabeça, chegam apenas finos sopros de melodia, ondas de incenso, enquanto o pombo perdido chora, as bandeiras tremulam sobre sepulturas e o ar escuro da meia-noite sacode árvores fora das janelas abertas. Quando baixo os olhos dessa transcendência, como são belas até as esfareladas relíquias do pão! Que simétricas espirais formam as cascas de pera - quão tênues, pintalgadas como os ovos de alguma ave marinha. [...]"

"Imensuravelmente receptivo, contendo tudo, fremindo de plenitude, mas claro e contido - assim é meu ser, agora que o desejo não mais o precipita para fora, para longe; agora que a curiosidade já não o pinta em mil cores. Jaz no fundo, sem marés, imune, agora que está morto, o homem a quem chamei 'Bernard'[...]"

"Assim, agora, assumindo o peso do mistério das coisas, eu poderia andar como um espião sem deixar este lugar, sem me mover de minha cadeira. Posso visitar as fímbrias remotas das terras ermas onde o selvagem senta-se junto à fogueira. O dia nasce; a jovem ergue até a fonte as joias aquosas de coração de fogo; o sol lança seus raios diretamente sobre a casa adormecida; as ondas aprofundam seu ritmo; jogam-se na praia; saltam negros seus respingos; deslizando, elas circundam o barco e o azevim do mar. Os pássaros cantam em coro; túneis fundos correm entre caules de flor; a casa alveja; aquele que dorme estende o corpo; gradualmente tudo se move. A luz inunda o aposento e faz recuar sombra atrás de sombra e elas ficam pendentes, inescrutáveis, dobradas em pregas. O que contém a sombra central? Algo? Nada? Não sei."

"[...] Choquei-me com a caixa de correspondência. Cambaleio de um lado para o outro. Ponho as mãos na cabeça. Meu chapéu caiu - deixei minha bengala cair. Fiz um papelão e todos os que passam riem-se de mim com razão"

"[...] Chame o garçom. Pague a conta. Temos de nos arrancar de nossas cadeiras. Temos de encontrar nossos casacos. Temos de ir. Temos, temos, temos - palavra detestável. [...]"

"[...] começo a perceber isto, aquilo e outras coisas mais. O relógio tiquetaqueia; a mulher espirra; o garçom chega - há um encontro gradual, uma reunião, uma aceleração, uma unificação. Ouça: um apito soa, rodas disparam, a porta range nos gonzos. Recupero a consciência da complexidade e da realidade e da luta, pelo que lhe agradeço. E com alguma compaixão, alguma inveja e muito boa vontade, pego sua mão e lhe desejo boa noite."

"[...] Agora, quero entoar minha canção de glória. Deus seja louvado pela solidão. Quero ficar sozinho. Quero pegar e jogar fora este véu do ser, esta nuvem que muda com o último sopro, dia e noite, e toda noite e todo dia. Enquanto estive sentado aqui, estive mudando. Observei o céu mudar. Vi nuvens cobrirem as estrelas, depois libertarem as estrelas, depois cobrirem as estrelas outra vez. Agora já não contemplo sua mutação. Agora ninguém me vê e já não mudo. Deus seja louvado pela solidão que removeu a pressão do olho, a solicitação do corpo, e toda necessidade de mentiras e de frases".

"[...] Qual a frase para a lua? E a frase para o amor? Com quem nome devemos designar a morte? Não sei.  Preciso de uma linguagem reduzida como a dos amantes, palavras de uma sílaba como a que as crianças falam quando entram no quarto e encontram sua mãe costurando e apanham um pedacinho de lã colorida, uma pluma ou uma tira de chintz. Preciso de um uivo; de um grito. [...] não preciso de palavras. De nada que seja exato. De nada que baixe com todos os seus pés no chão. De nenhuma daquelas ressonâncias e adoráveis ecos que se quebram e repicam de nervo em nervo em nossos peitos, formando música selvagem e frases falsas. Acabei com as frases."

"[...] Sim, esta é a eterna renovação, o incessante erguer-se e cair, e cair e erguer-se outra vez."

segunda-feira, 2 de maio de 2016

lembrete de que não sou ~~artista~~, e sim uma pessoa que se entende ao escrever. simples assim. baixa a bola.

Não há sentido em desfrutar "as coisas boas da vida".
O simples e irrisório café de um bate-papo tem de ser pago.
Mas para pagar, alguém tem de trabalhar.
De que vale trabalhar e receber dinheiro?

Para quê buscar as coisas boas da vida, se eu vou passar?
Prefiro o gelado punhal do sofrimento terrestre
à felicidade comprada e passageira.

Eu acredito antes de ver. E acredito que a alma sobrevive ao corpo.
Se eu durmo e existo no sonho, quê é o sonho eterno da morte?

Quê busco?
Ser feliz sem comprar? Seria tolo.
Busco realizar-me? Realização é fama, fama é vaidade.
...
Tudo de que preciso é amar. Mas não sei por onde começar.

Este corpo é uma bênção, e não o violo.
Procuro controlar minha sensação, e ouvir a Voz do Silêncio.
À parte isso, espero encarecido e atento pelo meu chamado,
que não virá de fora já que está dentro de mim.

Tenho que parar de depender de dinheiro alheio para chapar,
de resto estou livre. Liberto-me para gozar a vida ao meu modo.

Fazer o que quiser fazer.
Que me importam? números reais referentes à quantidade acumulada de reais em conta bancária; números racionais com de 0 a 10, com uma casa decimal, num papel emitido pela faculdade.
Eu colho o que plantei, e este é o destino que produzi com minhas ações. Nada é por acaso.

Os únicos algarismos que valem são de quantos livros eu leio,
de quantas conversas boas eu tenho, e de quantos riscos eu tomo.

Árido