O dilema existencial suscitado pela presença da inteligência artificial, utilizada para programar em linguagem de 0 e 1 interfaces como o pc pessoal, os mobile fones, as câmeras fotográficas e o próprio facebook mostra como o comportamento humano pode perder autonomia diante das rotinas estabelecidas pelos softwares.
Um exagero disso: múltiplos indivíduos que diante do cristo redentor e na influência de celulares portáteis apertam intuitivamente o botão para disparar e compartilhar fotografias. Mas quem realmente tira a foto? A câmera, programada para realizar uma tarefa automatizada, ou o ser humano, programado para apertar o botão? Quem é o autônomo? A câmera cujo software apresenta rotinas e limites, ou o ser humano que tem o pensamento como fragmento da mente divina e conta, portanto, com a infinitude da mente?
Basta olhar para os lados e perceber como as pessoas encaram confusas os displays luminosos das telas dos smartphones sem se dar conta de que elas também estão agindo de acordo com os scripts...
Apesar da ausência de uma conclusão objetiva para a trama da eXistenZ, o diretor favorece um filme "bom para pensar"; mas certo é que a esta altura do campeonato a sociedade já está inexoravelmente impregnada pela presença de aparelhos. Os domínios virtuais não são tão falsos quanto se pensa, pois foram criados no decorrer do desenvolvimento humano e portanto constituem consequências inevitáveis.
A instância da realidade-primeira, um ponto antes ou depois dos eventos do filme, não foi estabelecida pelo diretor. O filme mesmo é um exemplo da criação de uma atualidade autônoma que se auto-reproduz: uma arena destacada no tempo e no espaço, capaz de eternamente oscilar entre Realistas e programadores. A montagem faz o cinema transcender a realidade. O próprio encarregado dos Realistas que busca assassinar a engenheira de games no início do filme está usando aquela arma de osso que dispara dentes, claramente associada ao mundo virtual. Não se sabe exatamente, e também não importa, o que é real, pois não existe esta realidade pura de que idealmente se fala. A máquina já se encontra fundida à sociedade (ou seria o contrário?). A questão então é "no mundo real, qual facção se apropria da programação dotando-a de função benéfica e emancipatória em relação aos seres humanos, sem que lhes faça escravos do programa dos aparelhos que eles próprios configuraram?"
(Ou melhor, aparelhos configurados por indivíduos de alguma corporação cujas intenções constituem transubstanciação dos interesses dos criadores da tecnologia - isto é, o desenvolvimento de programas que para efetivamente serem lucrativos exigem a solidificação de hábitos de uso no comportamento do usuário de forma que a permitir a constante atualização e continuidade do dispositivos.)
(Ou melhor, aparelhos configurados por indivíduos de alguma corporação cujas intenções constituem transubstanciação dos interesses dos criadores da tecnologia - isto é, o desenvolvimento de programas que para efetivamente serem lucrativos exigem a solidificação de hábitos de uso no comportamento do usuário de forma que a permitir a constante atualização e continuidade do dispositivos.)
A população de usuários aparece como vacilantes zumbis desencantados e sem desígnios, embora satisfeitos numa nova realidade atualizada pela presença de programas que adquirem vida própria,
Mesmo que este seja o sentido da suposta evolução dos conhecimentos humanos (o que é mostrado pelos consoles originários de répteis geneticamente modificados, isto é, por um sistema de beneficiamento orgânico-natural-científico) uma teoria crítica que leve em conta o caráter epistemológico do conhecimento deve ressaltar que no processo de domesticação da natureza (rebaixamento de Deus ou arqueamento do homem) foram feitas escolhas cognitivas em que muito se perdeu e o que foi ali conseguido como resultado pode muitas vezes apresentar características imprevistas, como uma vontade arredia ao que foi objetivado pelos desenvolvedores, eles mesmos afetados pela exagerada apologia ao progresso, que é tão cara ao senso comum.
A racionalização do mundo e domesticação da natureza são paralelos ao surgimento da inteligência artificial, que numa contemporaneidade ocidental avessa a formas de pensar mais férteis e subjetivas (xamanismo, espiritismo, paganismo) torna-se terreno propício para experimentações digitais com outros níveis de realidade - tão constituidores de formas de pensar quanto os primeiros. Uma tecnologia que embora seja efetiva e funcional não pode, afinal de contas, ser taxada como racional à medida que é fetichizada, ou seja, concebida como um fim em si mesmo. Inova-se não para melhorar a condição humana mas sim pelo próprio prazer de se inovar.
É difícil argumentar contra essa "fantasia" irreal mas regozijante, pois Cronenberg caracterizou a interface de eXistenZ como prazerosa apenas se experimentada em grupo, isto é, quando há empatia e consentimento. Por outro lado, o guarda-costas é quem cede a um sistema totalizante. Quando aceita a instalação do console em seu corpo significa que foi cooptado por uma cognição que transcende o indivíduo apenas para lhe roubar a vontade.
Mas o argumento derradeiro contra o favorecimento de uma atualidade em que o mundo virtual aparece como panaceia a uma realidade desencantada e desencantadora encontra-se na própria historiografia da cosmologia moderna ocidental. O homem racionaliza o cosmos e o seculariza de todo o pensamento mágico e religioso para então autenticar a existência de mecanismos auto-divinizantes que o afastam da própria Realidade, pois o mundo real matematizado e condecorado com sistemas rigorosos de Física é muito distinto do mundo cotidiano sórdido e ignóbil, este que pesa sobre as costas e abate cotidianamente o ser humano, pequeno e vulnerável. A fome não cessa e o inverno é sempre muito longo. E se há algo real, então é a ação do homem na História, justamente aquilo que é completamente abolido quando o ser humano passa a responder apenas ao impulso de continuar no jogo, passando a responder a subprogramas subordinados à necessidade de auto-reprodução de certo mecanismo digital que cresce como um Leviatã. A tecnologia resultante é estranha ao interesse humano de auto-determinação.
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