quarta-feira, 23 de março de 2016

eXistenZ: Cronenberg. Análise: Filme fritante,mindfuck que possibilita várias interpretações. Esta é a minha apenas. Contra uma leitura conformista da História e fetichizada da Tecnologia.

O dilema existencial suscitado pela presença da inteligência artificial, utilizada para programar em linguagem de 0 e 1 interfaces como o pc pessoal, os mobile fones, as câmeras fotográficas e o próprio facebook mostra como o comportamento humano pode perder autonomia diante das rotinas estabelecidas pelos softwares.

Um exagero disso: múltiplos indivíduos que diante do cristo redentor e na influência de celulares portáteis apertam intuitivamente o botão para disparar e compartilhar fotografias. Mas quem realmente tira a foto? A câmera, programada para realizar uma tarefa automatizada, ou o ser humano, programado para apertar o botão? Quem é o autônomo? A câmera cujo software apresenta rotinas e limites, ou o ser humano que tem o pensamento como fragmento da mente divina e conta, portanto, com a infinitude da mente?

Basta olhar para os lados e perceber como as pessoas encaram confusas os displays luminosos das telas dos smartphones sem se dar conta de que elas também estão agindo de acordo com os scripts...

Apesar da ausência de uma conclusão objetiva para a trama da eXistenZ, o diretor favorece um filme "bom para pensar"; mas certo é que a esta altura do campeonato a sociedade já está inexoravelmente impregnada pela presença de aparelhos. Os domínios virtuais não são tão falsos quanto se pensa, pois foram criados no decorrer do desenvolvimento humano e  portanto constituem consequências inevitáveis.

A instância da realidade-primeira, um ponto antes ou depois dos eventos do filme,  não foi estabelecida pelo diretor. O filme mesmo é um exemplo da criação de uma atualidade autônoma que se auto-reproduz: uma arena destacada no tempo e no espaço, capaz de eternamente oscilar entre Realistas e programadores. A montagem faz o cinema transcender a realidade. O próprio encarregado dos Realistas que busca assassinar a engenheira de games no início do filme está usando aquela arma de osso que dispara dentes, claramente associada ao mundo virtual. Não se sabe exatamente, e também não importa, o que é real, pois não existe esta realidade pura de que idealmente se fala. A máquina já se encontra fundida à sociedade (ou seria o contrário?).  A questão então é "no mundo real, qual facção se apropria da programação dotando-a de função benéfica e emancipatória em relação aos seres humanos, sem que lhes faça escravos do programa dos aparelhos que eles próprios configuraram?"

(Ou melhor, aparelhos configurados por indivíduos de alguma corporação cujas intenções constituem transubstanciação dos interesses dos criadores da tecnologia - isto é, o desenvolvimento de programas que para efetivamente serem lucrativos exigem a solidificação de hábitos de uso no comportamento do usuário de forma que a permitir a constante atualização e continuidade do dispositivos.)

A população de usuários aparece como vacilantes zumbis desencantados e sem desígnios, embora satisfeitos numa nova realidade atualizada pela presença de programas que adquirem vida própria,

Mesmo que este seja o sentido da suposta evolução dos conhecimentos humanos (o que é mostrado pelos consoles originários de répteis geneticamente modificados, isto é, por um sistema de beneficiamento orgânico-natural-científico) uma teoria crítica que leve em conta o caráter epistemológico do conhecimento deve ressaltar que no processo de domesticação da natureza (rebaixamento de Deus ou arqueamento do homem) foram feitas escolhas cognitivas em que muito se perdeu e o que foi ali conseguido como resultado pode muitas vezes apresentar características imprevistas, como uma vontade arredia ao que foi objetivado pelos desenvolvedores, eles mesmos afetados pela exagerada apologia ao progresso, que é tão cara ao senso comum.

A racionalização do mundo e domesticação da natureza são paralelos ao surgimento da inteligência artificial, que numa contemporaneidade ocidental avessa a formas de pensar mais férteis e subjetivas (xamanismo, espiritismo, paganismo) torna-se terreno propício para experimentações digitais com outros níveis de realidade - tão constituidores de formas de pensar quanto os primeiros. Uma tecnologia que embora seja efetiva e funcional não pode, afinal de contas, ser taxada como racional  à medida que é fetichizada, ou seja, concebida como um fim em si mesmo. Inova-se não para melhorar a condição humana mas sim pelo próprio prazer de se inovar.

É difícil argumentar contra essa "fantasia" irreal mas regozijante, pois Cronenberg caracterizou a interface de eXistenZ como prazerosa apenas se experimentada em grupo, isto é, quando há empatia e consentimento. Por outro lado, o guarda-costas é quem cede a um sistema totalizante. Quando aceita a instalação do console em seu corpo significa que foi cooptado por uma cognição que transcende o indivíduo apenas para lhe roubar a vontade.

Mas o argumento derradeiro contra o favorecimento de uma atualidade em que o mundo virtual aparece como panaceia a uma realidade desencantada e desencantadora encontra-se na própria historiografia da cosmologia moderna ocidental. O homem racionaliza o cosmos e o seculariza de todo o pensamento mágico e religioso para então autenticar a existência de mecanismos auto-divinizantes que o afastam da própria Realidade, pois o mundo real matematizado e condecorado com sistemas rigorosos de Física é muito distinto do mundo cotidiano sórdido e ignóbil, este que pesa sobre as costas e abate cotidianamente o ser humano, pequeno e vulnerável. A fome não cessa e o inverno é sempre muito longo. E se há algo real, então é a ação do homem na História, justamente aquilo que é completamente abolido quando o ser humano passa a responder apenas ao impulso de continuar no jogo, passando a responder a subprogramas subordinados à necessidade de auto-reprodução de certo mecanismo digital que cresce como um Leviatã.  A tecnologia resultante é estranha ao interesse humano de auto-determinação.

domingo, 20 de março de 2016

(as emoções fluem pela minha consciência. eu tento me focar no que eu quero escrever, mas eu não sei exatamente o que é. eu sei que existe uma ideia, um insight aqui dentro da minha consciência embriagada mas é difícil parir essa criança. minha vagina mental ainda está bem apertada mas a cada gole de Skol ela vai se expandindo, embora meu estômago como um cu feminino que se caga enquanto a criança sai me irrita e minha náusea cresce... esse gosto deplorável atrás da minha língua. eu tenho aspiração de escrever e ser entendido e por todos. vamos lá.)

sexta-feira, 18 de março de 2016

Exercício: descrição breve em 15 minutos (ou Diga-me o que ouves e te direis quem és)

Música para quem não tem amor próprio

Lembro-me muito bem de quando ouvia esse álbum com headphone e volume bem alto andando pelas calçadas insólitas da capital. A espuma quente abafava os ruídos e esmigalhava a orelha suada. Olhe para essa capa, ela é asquerosa e o conteúdo dessas letras é tão espúrio quanto uma banheira entulhada com seringas de heroína. Eu estava no Bar do Bin Laden tomando uma cerveja Lokal atrás da outra, e eram 16h da tarde. Sentado na cadeira vermelha de plástico na calçada eu olhava os prédios de cor marrom desbotada e múltiplas janelas que olhavam de volta para mim como vultos fantasmagóricos de torpor alcoólico. Atrás dos prédios as nuvens vulgares com seu movimento insolente induziam à náusea. Mais cedo eu tinha ido ao bar do China na Galeria e havia tomado litrões e algumas doses de tequila. Por que eu estava fazendo aquilo? Eu tinha namorada, dinheiro no banco e uma sede por álcool e auto-destruição. Anoiteceu no Bar do Bin e eu continuava na calçada, levantei e com o andar trôpego arrisquei conversar com o Alê - o t(...) da casa, que impetuosamente me repreendeu por ficar a tarde inteira sentado com cara de idiota olhando tudo acontecer "sem trocar ideia". Fui tocado de sua presença como um cachorro manco, e ele dizendo "não sei nem por que você tá falando assim tão perto de mim...se afasta,cara." A única reação que eu consegui esboçar era uma profunda indignação "Por quê...?" Alucinado, indefeso e maltratado. Sim, o Alê, o t(...) particular dos neuróticos frequentadores do pulgueiro mais sensacional no centro da cidade na 9 de Julho, fora ele a única pessoa com quem eu tinha tinha trocado uma única palavra naquele dia inteiro  - não-intencionalmente e depois de muito beber e perder toda a minha consciência. Retração crônica. Nessa febre eu sentei ao lado da Japa e comecei a beijar a mão e o braço dela, dizendo que ela era quente - e ela estava gostando. Há quanto tempo isso não acontecia na minha vida? Aliás, isso já havia acontecido antes...? O Alê enciumado ficou mais puto ainda. "Por mim você não tava nem conversando comigo, sai do meu lado e volta pra Japa, cara." O bar lotou. Eu não sabia que tipo de negócio eu tinha para resolver naquele lugar. Eu tinha namorada. Fugi e sem nem saber entrei no metro a tempo de voltar para casa. Na lotação eu dormi e perdi o ponto para descer, e no terminal quando o motorista manobrava para estacionar eu coloquei a cabeça para fora da janela e vomitei. Cheguei em casa e no meu quarto vomitei mais um pouco do lado da cama. Minha situação era tão deplorável que eu não consegui nem pensar em limpar aquele vômito aguado e etílico. Dormi e acordei de manhã com o cheiro azedo e o celular tocando. Minha cabeça tilintava a cada pensamento. Quem poderia ser? Sim, minha namorada. "Leonardo, você está vivo?" No dia anterior eu passei o tempo todo bebendo e esqueci da existência dela. Não dei um sinal de vida, e ainda flertei com uma japonesa. Sim, eu não queria amá-la. Não, eu queria mas não sabia como.  Não! eu não suportava mais aquela prisão a que os tolos chamam "amor".

quinta-feira, 17 de março de 2016

aí sim!

estou recebendo algum amor pelas playlists temáticas que organizei neste site 8tracks. "receber amor" significa que as pessoas clicaram no botão play para ouvir, e em seguida clicaram no coraçãozinho like, isto é, as pessoas gostaram dos sons que organizei em sequências temáticas (embora eu não os tenha composto!) isso significa que meu gosto musical está sendo aprovado :D

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quarta-feira, 16 de março de 2016

Diário de leitura: "O Livro do Desassossego"

Ele ( O Livro do Desassossego ) não traz a solução tranquilizadora que muitos desejariam, a saber: a heteronímia teria sido uma farsa voluntariamente montada e em seguida controlada por Fernando Pessoa, como o animador soberano e calmo de um conjunto de marionetes. O que o Livro confirma, com uma aterradora nitidez, é a ausência de centro nessa multidão, a inexistência de limites nítidos entre seus componentes, a falta de qualquer precedência psicológica ou cronológica entre eles. O que ele expõe é realmente um drama, nos dois sentidos da palavra: teatro, sim, mas também tragédia existencial vivida na mais funda dor. p. 27

O horror ao Outro, que se exprime em vários fragmentos, aqui atinge seu grau máximo, na medida em que a mulher é a diferença radical. Destruidor de si mesmo por uma auto-análise obsessiva, Pessoa/Soares destrói também o Outro. Em suas considerações, a mulher se torna uma imagem, uma ficção. Através de raciocínios inexoráveis, ele vai demonstrando que o amor é uma ilusão e uma impossibilidade, já que o real jamais corresponderá ao sonho e a comunicação será sempre malograda. A proposta decorrente é lógica: "O amor maior é por isso a morte, ou o esquecimento, ou a renúncia. p. 22

terça-feira, 15 de março de 2016

Sobre como é difícil passar o final de semana dentro do quarto.



Neste dia eu vi nuvens roxas, amarelas e cinzas. As intempéries oscilavam lá fora enquanto meu olhar curioso e interessado extraía fascínio da paisagem diante da minha janela.



Tentando aproveitar meu tempo descobri que ainda guardo alguma daquela molecagem de outrora, quando passava tardes inteiras desenhando pelo puro prazer de brincar.

O declínio de um homem - Osamu Dazai

"Horiki parecia cheio de satisfação.
- Esse seu talento para levar a vida, um dia, encontra seu fim.
Talento para levar a vida. Eu não pude fazer nada além de dar uma risada sem graça. Talento para levar a vida, eu? Todavia, ocorreu-me que uma pessoa como eu, que teme os seres humanos, que os evita e os engana, é, aos olhos dos outros, muito parecida com alguém que vive a vida com astúcia e malandragem, como o dito popular que diz para "não mexer com quem está quieto".
Ah! Será que os seres humanos não entendem nada de seus próximos, veem os outros de forma completamente equivocada? E que, mesmo assim, sem se dar conta disso elegem por toda a vida alguns como melhores amigos, e quando estes morrem, discursam aos prantos no funeral?"
Osamu Dazai

Ideia jogada para a posteridade. Retomada de uma coisa que eu já aprendi: a mulher é mais conectada à terra que o homem.

"O simbolismo vermelho liga-se também ao culto da Terra, Asase Ya, julgada 'divindade feminina'. Ela não tornou tabu a menstruação; ela gosta de sangue humano."

Eu confio nisso!


"Quem deixa de cuidar só de si mesmo é olhado por todos."

Arte ou súplica? um post dedicado à amiga Bia.

Primeiramente, sou grato por ter tido acesso a estas linhas tão genuínas, que em sua angústia e lirismo desvelam uma personalidade densa e sensível. Como a autora disse, expor assim os sentimentos equivale a ser despida. Então espero que minhas impressões escritas abaixo não sejam como o toque invasivo que irrita a pele.
There's a devil on my back ou "por que sozinha?"

Com vocabulário simples e preciso a Bia consegue sugerir ao leitor imagens arrebatadoras e excruciantes de uma condição de desassossego. Imagino que o efeito de transcrever as emoções em palavras tenha o sabor de uma redenção: externalizar aquilo que aflige a alma e buscar a compreensão. Neste sentido, um dos méritos da autora é selecionar palavras leves e líricas para criar imagens nítidas de sentimentos tão retorcidos e insólitos, favorecendo a comunicação com quem lê e também possibilitando o entendimento da sua própria personalidade. Vejamos:

  • E aí não cabe, e da minha pequenês eu nasço. Como eu vou dormir daqui a pouco enquanto o mundo nasceu a 4 bilhões de anos e eu só acordei não faz nem 15 horas? E ele ainda vai nascer, e eu tambem.
Identifico-me com a sensação de pequenez, a dúvida e o senso de espanto diante da existência. Nascemos pelados mas somos obrigados a tomar parte na moderna corrida dos ratos como se fosse possível levar conosco aquilo que "batalhamos" e "conquistamos" na vida, mas para quê? Onde tudo isso nos leva? Qual o sentido?

Se a morte é uma das certezas, então por que ninguém tem respostas convincentes para o que acontece depois? 

"Quem não sabe o que é a vida, como poderá saber o que é a morte?" Confúcio ( 551 A.C - 479 A.C)

Bia, é difícil ser ser-humano, e existir neste mundo é realmente muito bizarro se formos parar para pensar... As dúvidas são infinitas, mas às vezes me pergunto: por que matutar questões tão torturantes que às vezes não fazem nada além de esfrangalhar a nossa frágil consciência?

Uma certeza que eu tenho é que nos 5 minutos após a morte, quando este corpo de agora fenecer, meu Espírito se lembrará da vida que viveu como "Leonardo" e de todas as outras vidas inteiras que viveu antes de mim como João, Maria ou Roberto. A visão panorâmica e atemporal do Espírito mostrará que esta carcaça de carne e osso que tenho é apenas um estágio da minha evolução - e que níveis de existência mais pacatos existem para mim, bastando apenas que nesta vida eu me comprometa a evoluir com responsabilidade. A auto-destruição neste sentido seria uma chaga que o espírito carregaria para além da vida. E daí eu tenho certeza que seria mandado para este plano material como um ser-humano mais uma vez... para sofrer tudo de novo e aprender com a vida! Mas isso é só o que eu penso... você concorda?

  • Tento contar até dez mas me perco em meus pés: tem um buraco sem fim ali que sempre me atrai. Meu alinhavo frouxo não costura pé descosturado, e nem agulha de tricô alcança o fim de minhas pernas. Minha cabeça é o topo de um abismo de 1,67; o chão tá tão longe. Eu sou infinita, sou infinitamente finita.
Esta imagem é especialmente singular.  No decorrer dos trechos vai ficando evidente uma consciência que estranha o próprio corpo. Uma padrão de pensamento obsessivo que produz desconforto crônico. A criatividade da imagem é encantadora, mas enxergaria mesmo a autora um buraco entre os pés? Ou o sentimento que deu origem à imagem transcende as palavras? De qualquer forma, aqui há sentimento visceral e habilidade literária!

Mas a Bia não é só angústia, é também o convite à cumplicidade e afeto. Uma garota que quer poder compartilhar seu amor e sentir-se querida:

  • Descalce teus pés em meus e os aqueça desse frio; o que é longe de meu coração não precisa ser do seu. Minha voz rasgada não diz nada, mas preciso que seus ouvidos ouçam tudo. Desse silêncio quero que ouça minha Scherazade, e que de meu grito não sobre nada. 
Confissões trocadas no quarto escuro. Diálogo intenso de almas. Mas agora todas as palavras já parecem ser fúteis, e o silêncio não incomoda mais. O mesmo corpo que outrora era objeto de estranhamento agora se reconhece noutro. A cabeça repousa no peito, confortável e serena.

As emoções são variadas, ora retratam uma mente estressada que parece constantemente se sabotar, ora descrevem o espanto comum a todos os seres humanos que olham para a vida com um senso de admiração, ora demandam atenção e carinho. O resultado dos escritos é um texto lírico que transmite naturalmente a sensação de leveza - súplica ou arte? Provavelmente ambos!

Não estou aqui querendo julgar e atribuir notas objetivas ao sofrimento alheio. Primeiramente, queria poder conhecer os mistérios da sua personalidade. Você tem um estilo singular, é capaz de costurar, de desenhar e de escrever!  O ser humano é como um poço sem fim que deve transbordar entusiasmo. Supor que duas pessoas às vezes podem ficar sem assunto e se estranharem é desconsiderar a infinitude da mente!

No limite, apenas a companhia compartilhada já é suficiente para se sentir bem - e eu me senti à vontade sentado ao seu lado. Eu com camiseta de belzebu e você "up to no good".  Na quinta-feira passada quando você me entregou o livro e ofereceu cigarros eu não aceitei porque senti que "agora sou um com meus amigos, engajado numa conversa amena e recreativa". Meu desejo era faltar na aula para continuar naquele momento gostoso em que todos nós fomos destacados da correria da Babilônia e ascendemos juntos a uma nuvem de empatia na tarde chuvosa. Você viu como hesitei e fiquei orbitando lá ao redor de você e do Honda...!

Em segundo lugar, me interesse especialmente por pessoas com verve artística. O leitor, por sua vez, padece com o sofrimento da garota, mas se alegra por saber que ela atualmente tem superado suas dificuldades. Aquele que se interessa por palavras também se encanta pela destreza que a autora exibe. Pergunto-me, neste sentido, por fim, se ela foi escrevendo pouco a pouco, como que encaixando peças de um quebra cabeça, realocando palavras e corrigindo erros, ou depositou no papel tudo de uma vez, de maneira que o que se lê é a primeira e última versão daquilo que foi derradeiramente escrito.

Enfim, li no Instagram que você estava mal, e desejo força para você, amiga. Já gosto de você. Acredito que os amigos podem ajudar um ao outro naquilo que é de mais valioso na vida: pensar positivo. Se cuida. 

quarta-feira, 9 de março de 2016

Janet e Tamlin




História de Janet narrada pela voz de David Tibet. É um poema popular de autoria desconhecida e disseminado através da Escócia medieval em múltiplas versões passadas boca-a-boca.

Uma das versões conta que Janet (Lady Margaret) deixou o castelo do pai e saiu pelos bosques à busca de flores para ornar seu chapéu. Colhendo rosas nos inóspitos jardins da floresta, foi assaltada de imprevisto pelo homem habitante daquelas profundezas, que a deitou na grama e arrancou à força sua virgindade.

Depois do ato, o homem apresentou-se a Janet como Tamlin. Embora sua aparência fosse humana, a alma de Tamlin fora capturada pela Rainha dos Elfos, que o mantinha cativo como Guardião daqueles bosques.

Ponte de Carterhaugh - Escócia

Janet volta ao castelo do pai e depois de algum tempo descobre que está grávida. As garotas da corte recomendam uma erva cinza, que cresce além dos bosques, para arrancar o bebê de suas entranhas.

Janet mais uma vez se aventura pelas áreas proibidas da floresta e enquanto colhe as ervas é visitada mais uma vez por Tamlin, que a convence de não abortar, pois a vida que trazia dentro de si constituía o único elo entre ela e o pai de sua criança.

Tamlin também informa que na calada daquela noite cavalgará o cavalo branco na tropa da Rainha dos Elfos rumo ao inferno, e pede que Janet se esconda embaixo da ponte do moinho para resgatá-lo, o pai de sua criança. Diz que ela deverá ser corajosa e forte, pois a Rainha dos Elfos fará ele passar por uma série de metamorfoses: um selvagem leão e depois uma asquerosa cobra. Janet deve agarrar-se a ele sem medo, o pai de sua criança.

E assim o faz, até que ele é transformado em um homem nu nos braços dela.

Furiosa e desapontada, a Rainha dos Elfos amaldiçoa Tamlin, dizendo que se fosse capaz de prever o acontecido, antes transformaria o coração dele numa pedra, e colocaria seus olhos nos troncos de uma árvore, como uma dríade.

Pan despertando as dríades

Um delicado conto medieval. Janet é exemplo de mulher brava e corajosa a inspirar os ouvintes.  É trágico no entanto que a atrocidade do estupro seja tão naturalizada e não precise ser reparada. Não há comentário sobre a má fé de Tamlin, o que faz supor que se Janet fora estuprada é porque se aventurou pelas profundezas dos bosques proibidos. Culpabilização da vítima.

Numa época em que a virgindade da mulher era valorizada como os dentes de um cavalo a ser comprado, não foi absurdo que homens mal-intencionados se aproveitassem de sua força física para engravidar moças de estamentos superiores para prendê-las a si. Afinal, depois de desvirginada a mulher perderia seu valor como esposa e não teria escolha além de permanecer com aquele que a violentou.

E Janet assim o fez: agarrou-se ao homem num amor putrefato e perverso.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Pensando sobre Teoria Crítica e o rock

Esse bloco de texto escancara toda a distância que existe entre mim e o mundo real imediato ao meu cotidiano - distante da associação de bairro e dos coletivos auto-organizados, mais ou menos sabido da política pública paulistana, definitivamente alheio aos trâmites institucionais federais e conscientemente analfabeto de economia - em favor de uma realidade idólatra e imersa em devaneios platônicos que embora limitada seja o melhor modo pelo qual posso contribuir a uma discussão importante. Essas pessoas são minhas amigas e andam ao meu lado, insiro-me em sua tradição, aprendo e me inspiro com elas.


O livro do Rodrigo Merheb me fez um pouco mais apaixonado pela música dos anos 60. São várias recomendações musicais permeadas por finas biografias, e tudo amarrado pela reconstituição histórica daquele momento de agitação cultural. Dos testes de LSD em caravana pelos Estados Unidos até os protestos anti-Vietnã, militantes a favor da causa negra e pela liberdade de expressão fizeram da música e da arte um instrumento de conscientização. Com o festival de Monterey em 1967 o rock se firmou como fenômeno de massa, e ao mesmo tempo que líderes políticos de uma nova esquerda queriam utilizar o fenômeno musical como catapulta para a revolução, as gravadoras granjearam contratos milionários, e a moda hippie passou a desfilar pelas calçadas da Califórnia e do mundo.

Personalidades tão desviantes quanto inspiradoras, do náipe de Valerie Solanas (autora do manifesto feminista radical SCUM - também conhecida como a-mulher-que-atirou-em-Andy Warhol); o lúcido e sempre relevante Bob Dylan; o inveterado viciado Lou Reed; a estimulante e talentosa presença de Grace Slick e o insinuante corpo libidinoso e liminar de Mick Jagger foram todos comoditizados pelos holofotes da indústria fonográfica, que exportou comportamentos proibidos mas atraentes, alucinados e transgressores.

A conclusão que se pode tirar é que se o rock como catalisador histórico evidentemente falhou, por ter sido selecionado, censurado e vendido, é porque os universitários estadunidenses do pós-guerra (aumento demográfico e maior densidade de jovens no Ensino Superior) não sabiam com clareza as ações políticas a serem tomadas. Nesse bojo de agentes desnorteados estão inclusos também os próprios ídolos musicais, que longe de serem revolucionários profissionais eram, sim, consciências humanas que encaravam tudo aquilo com o pasmo de quem hesita entre o encanto de uma atmosfera de mudança e a impotência do indivíduo desorganizado e reprimido.

Pois, enfim, o mesmo solo que foi fértil para a experimentação cultural e artística também serviu como cova perversa e profunda  para cadáveres de espíritos visionários e perigosos: Malcolm X (1965), Luther King Jr. (1968), Marshall "Eddie" Conway (Pantera Negra preso em 71 e feito cativo por quase 44 anos). Numa época em que as incendiárias performances roqueiras frequentemente sofriam batidas policiais, a história do próprio Roky Ericsson infelizmente não foi incomum: a apreensão de alguns baseadinhos de maconha em seu bolso foi suficiente para mandá-lo direto para dentro de um manicômio, lá onde recebeu tratamento de choque e, aí sim, foi devidamente perturbado pela ação das instituições pérfidas do Capital.

Merheb é genial, e em seu livro fica claro, a todos os desconfiados, que o establishment, como um organismo vivo, reproduz-se em sua superestrutura através da ação humana.

Merheb, R. (2012). O Som da Revolução: uma história cultural do Rock (1965-1969). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.