Esta noite após todas as luzes haverem sido apagadas, deitei na cama e percebi o vulto se formando a partir das sombras que se acumulavam na mobília. Um espectral de cor negra, forma humana espessa, densa e muito alta que se expandia magramente do chão até o teto.
Eu, que tenho por costume projetar minha mente para fora do corpo físico durante o sono, e me observar o corpo lá embaixo no leito repousando, vi esta sombra aproximar-se de mim a passos largos e, num golpe, fazer-se penetrar pelas minhas narinas. Meu corpo físico sofreu um solavanco mórbido, engasgando-se enquanto sugava garganta adentro o longo espectral como fumaça tóxica.
Mas que era aquele ente sombrio dotado de movimento e aparente vontade própria? Alguma espécie de demônio devasso desejoso de comer minha mente e nela introduzir desvirtudes como a vadiagem e mesquinharia, ou um serviçal das trevas que, vendo meu potencial para as boas ações, estava na missão de me sonambulizar e se utilizar do meu corpo para atrocidades indizíveis?
Elevado e superpotente acima da casa que aparecia a mim com teto e paredes transparentes, eu via minha irmã caçula ainda acordada no quarto ao lado, indefesa, e minha mãe já dormindo profundamente, afastada de nós, lá embaixo.
A substância azul translúcida que fluia gravitacionalmente do meu corpo astral até o corpo físico, alimentando a mente e o sonho, de súbito se escasseou, e passei a ver borrões muito distantes e incertos. Apaguei como espírito e acordei dentro de mim mesmo, como uma personagem no sonho arquitetado por aquela criatura perversa.
A imagem pisca e oscila, como interferências de um filme antigo. Chuva negra caindo por cima de um labirinto com colunas de espinhos, onde a treva é absoluta. Uma passagem larga, abrindo caminho por entre paredes de roseiras petrificadas até uma catacumba branca de porcelana, iluminada pela última luz que sobrevive pálida e oscilante no poste. Chão enlameado repleto de vermes malditos, e sobre a lápide um lírio fechado, ninho para duas lagartixas acinzentadas que se entrelaçam e mastigam vagarosamente a cauda uma da outra.
Garota lésbica com problema psicológico abre o túmulo, e dele emerge um punhado de moscas caçadoras graúdas e verdes, a zunir e se debater contra minha testa úmida. Quem apodrece ali é a minha mãe, com o mesmo rosto e mesma expressão que tem hoje quando dorme.
O farfalhar de dois corvos vindos da árvore. Pousam no parapeito do sarcófago atrás da cabeça da mulher. Silêncio dramático - as aves entreolham-se. O primeiro, de um pequeno salto, pula na testa do cadáver e experimenta a textura dos olhos com a garra enquanto chuva escorre pelas rugas carrancudas. O segundo corvo voa até o pescoço, cutuca por dentro do nariz e retira um verme marrom, longo mas fino, que se retorce no bico. Debulham o rosto da pessoa até não existir mais nada que se assemelhasse ao corpo que um dia foi animado por uma alma, mas que agora não é mais que substrato orgânico, adubo para a vida.
Toda a paisagem some, e me vejo suspenso num grande vácuo sem nada à minha volta. O maravilhoso Satã aparece sobre duas pernas a mim. Seus chifres lustrosos e grossos são consolo a uma colônia de súcubos, nuas em pelo - corpos femininos de toda variedade que cirandeiam e se insinuam com volúpia no olhar. O pênis pende flácido até a altura do joelho, voltado com a cabeça vermelha e pulsante para fora. Os colhões são quase que ocultados completamente por uma bolsa de pelos escuros. Seus seios são tenros e rosados, onde mamam lascivamente e se esfregam os incontáveis e pequenos íncubos. Todo o corpo de Satã exala luxúria, lubrificado em fluidos luxuriantes de seu fértil exército.
-"O que mais queres tu para além disso, soldado? Não caias em delírio. Apenas aceita, garoto, e vai tu para casa, e transa tuas mulheres, bebe teu licor e goza a tua vida sórdida de animal humano. Não te preocupes: transa, bebe, goza a vida! Sejais o autor da tua própria Lei, e na hora de morrer, morre dignamente como aquele que sabe não haver nada para além da carne - nem abaixo nem acima! Querer mais é pedir o impossível. Ou pensas tu que o espírito sobrevive à matéria? Gostas de te iludir? Desprezível humano cujas verdades que acata não são mais do que mentiras que conta a ti mesmo a fim de conseguir conforto à hora de dormir, e motivação para acordar."
Solapado pela dúvida, eu não pude pensar. Não conseguia entender que o que se passava ali eram cenas oníricas de um sonho mau. Portanto fiquei perplexo quando uma luz irradiou aquela escuridão como gládios de claridade. Levei as mãos aos olhos por instantes até que a intensidade da luz diminuísse, e na fonte de onde irradiava a iluminação eu A vi. Como posso defini-lá? Não uma pessoa, mas sim uma sensação, que por vezes já havia deleitado a mim noutros sonhos, mas nunca assim tão radiantemente. Algum elo entre o plano do sonho e uma realidade transcendental para além do próprio sonho, da qual após o despertar restava apenas uma leve sensação de amor tão profundo e incomensurável. Sim, Ela. Traduzo-a como a Fé. Eu A senti, no sonho mesmo, e Ela me disse:
-"O teu sofrimento será o maior de todos, garoto. Tu sofrerás na carne e no espírito, portanto acostuma-te a sofrer. Em todos os teus dias a matéria há de te castigar, a necessidade de movimento cairá sempre sobre teus braços e tuas pernas, tu terás sempre de ir em busca de algo em algum lugar. O peso de existires e saberes que tu existes nunca te abandonará. Tu sempre estará consciente e pensando. E quando deitares no colchão, a insônia perseguir-te-á, tua respiração não aquietará e tu não terás descanso. E quando a luz da manhã finalmente começar a raiar, conseguirás teu sono, mas mesmo em sonho tu ainda vais estar consciente de que existe e teu sono será apenas um estado de vigília noutra dimensão. Aceita isso! Mas eu digo o que tu és: tu és um perceptor. É pelos olhos teus que Deus pode tão nitidamente Se ver. Esta é a chave que te dou: tu fica sabendo agora que todo pensamento passa, e que tu não és os pensamentos que acontecem pela tua cabeça. Como perceptor, tua única obrigação é a de te colocares e te impor da maneira mais justa possível diante das situações em que te encontrares. Este teu corpo é como uma folha de papel em branco, os pensamentos que ocorrem a ti são as palavras escritas mas que logo se apagam, e a soma das tuas páginas é o caderno guardado na infinita biblioteca divina. Agora, acorda!"
E foi assim que eu fui libertado daquela estranha aparição de trevas. No dia seguinte fiquei sabendo que o vizinho havia se enforcado naquela mesma noite; sua personalidade imaterial atormentada e recém-departida do corpo físico provavelmente atraiu para cá aquele Elemental corrupto.
E foi assim também que recebi meu primeiro chamado místico, isto é, um contato íntimo com as maravilhosas emanações de pureza que existem nativamente dentro de mim mesmo.
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