domingo, 13 de setembro de 2015

Sanma no aji - A rotina tem seu encanto (1962). Análise dos papéis de gênero e uma definição preliminar de patriarcado

Então, ontem assisti a esse filme que é tão singelo quanto sincero. A rotina tem seu encanto. O objeto do filme são os papéis domésticos dentro da família japonesa. É um estudo otimista da divisão das funções de marido (homem) e esposa (mulher).

Conta a história de Shuhei, um senhor viúvo, pai de um homem no início de um casamento e ainda sem filhos; uma bela e dedicada moça, Michiko, que além de trabalhar na firma de Shuzo, amigo do pai, é também gestora do lar, cuidando com zelo do velho pai e do irmão adolescente. Diretor de uma empresa, o nosso bem-sucedido senhor ouve constantemente de Shuzo, seu amigo de longa data, que Michiko, em seus 24 anos, está na melhor idade para casar e arranjar um bom partido. Quem concorda com esta opinião é Horie, também viúvo e bem sucedido, mas que diferentemente do nosso protagonista já casou a filha há muito tempo, e agora vive bem com sua jovem esposa, contando com auxílio do famoso azulzinho para dar aquela levantada.


Michiko em seus afazeres domésticos aguarda a chegada do pai e irmão
Nas reuniões quase que diárias do viúvo com seus dois amigos em seu bar preferido, a conversa é regada a muito saquê e pregação de peças. Em uma destas ocasiões aparece a esposa de Horie, vestida de um longo quimono e meias, com cabelos presos em coque atrás da cabeça. Única vez em cena, esta jovem é muito bem educada com os companheiros de seu esposo, todavia não aceita o convite para sentar e beber com eles já que estava apenas de passagem: tinha ido fazer compras, e entrega ao marido suas "vitaminas". O homem então quebra o compromisso que tinha com os outros dois e segue para casa enfeitiçado pela ninfa que tem como esposa. 

Em outra reunião regada a álcool, em ocasião de homenagem de estudantes de faculdade ao mestre Calabaza, ficam Shuzo e o nosso protagonista encarregados de levar para casa o ancião, que de tanto saquê esqueceu até como andar. Chegando à casa do velho, deparam-se com o triste destino da filha: de beleza esgotada, sua vida é cuidar do pai viúvo, que não raramente chega bêbado e perde a delicadeza com as palavras. Este é o turning point do enredo, a partir do qual o Shuhei passa a considerar mais seriamente a proposta de casar a filha.

O velho Calabaza recebendo uma garrafa de Whisky
A história desenrola-se em diversos núcleos que correspondem mais ou menos às famílias: além do dilema de Shuhei e sua filha também são retratados de forma tanto crítica quanto cômica os conflitos e desentendimentos a respeito de orçamento doméstico e autoridade entre o casal formado pelo filho mais velho de Shuhei e sua esposa, numa relação própria dos recém-casados que estão começando a se ajeitar juntos.

O filme é otimista porque retrata a família como uma instituição que funciona: o pai respeita a filha, que tem poder de agência e manda o irmão mais novo ou o próprio pai fazerem suas coisas quando se sente desvalorizada ou abusada. O casamento é visto como uma cooperação entre homem e mulher, com funções bem definidas. Não há violência doméstica e adultério, nem tampouco prostituição. Yasujiro Ozu propõe um retrato da rotina das atividades do casal que deve funcionar como uma inspiração e um motivo norteador a homens e mulheres japoneses. 

E aqui vem a análise sociológica: o diretor acredita no casamento como uma instituição que produz bem-estar, e em sua linguagem cinematográfica aceita prerrogativas de comportamento feminino como positivas e necessárias  para que a rotina tenha de fato seu encanto, a saber:

  • a mulher quando se casa pode abdicar de atividades remuneradas em função da dedicação ao lar, que lhe foi instruída desde a infância e posta em prática nos diversos momentos de seu amadurecimento como mulher-esposa.
  • a mulher recebe as incumbências da gestão do lar como dever e responsabilidade. Com efeito, Michiko nega categoricamente o pedido do pai para que se case, porque, segundo ela, o pai e o irmão não conseguiriam realizar as atividades domésticas e se dariam muito mal se ficassem sozinhos;
Michiko ainda irritada diante da sugestão do pai, que em difícil decisão preferiu a solidão de sua viuvice ao remorso de impedir que a filha vivesse sua vida





















  • no lar as funções da mulher têm têm a ver com os serviços domésticos bem como a importante faculdade de servir como elo de comunicação entre famílias nucleares. Com efeito, quando Michiko ainda confusa pela sugestão de que deveria se casar foi logo desabafar com a cunhada, que posteriormente compartilhou algumas informações com o marido;
  • a mulher que não se casa durante a juventude torna-se solteirona, uma posição social desprivilegiada , que foi tão bem retratada na filha já gorda e feia do ancião Calabaza, que não casou a filha, beneficiando-se assim de sua companhia na solidão da viuvice;
  • a mulher pode literalmente dar bronca e impedir que o homem tome decisões que vão a seu contragosto quanto o assunto é orçamento doméstico, como mostrado de forma cômica e clara na personagem da cunhada, que falta puxar o orelha do seu marido para o impedir de gastar dinheiro de forma desnecessária em tacos de golfe. O desfecho: o homem desistiu dos tacos, mas em último momento sua esposa permitiu que ficasse com eles, contanto que ela mesma também pudesse gastar certa cifra em uma bolsa de pele;

A prestativa esposa de Shuzo, que com simpatia serve o jantar e participa da conversa a partir de outra mesa.
  • o âmbito de atividade da mulher é sempre a casa, mesmo que possa trabalhar e atravessar de trem a cidade para ir à casa de familiares ou sair com as amigas. Cena significativa é quando Shuhei vem à casa de seu filho mais velho conversar sobre o casamento de Michiko. À ocasião o jantar que o filho ia ter com a esposa no interior da casa é subtraído, e pai e filho dirigem-se sem a mulher a um restaurante para conversarem do assunto particular em questão;

  • no interior da casa, domínio da mulher, a ela cabe receber os convidados do marido, servi-lhes a comida, participar também da conversa mas sem se sentar à mesma messa, levantando-se prontamente para levar até a porta despedir-se dos convidados em nome da família.

Desta forma Yasujiro Ozu quer ao mesmo tempo reafirmar um ideal ótimo de rotina e também dizer que "em time que está ganhando não se mexe".  Não obstante a sinceridade e boa intenção, o filme para existir precisou fazer um recorte de realidade. Com efeito, não trata, por exemplo, do fato de a mulher em sua formação como esposa ficar alijada do estudo profundo em faculdade, que se realizado raramente garante a ela cargos de diretoria e liderança. Em uma formação que privilegia a boa educação, a conversa, a hospitalidade, em suma, a gestão do lar sobre outras capacidades, o desenvolvimento de características voltadas à engenhosidade e tomada de decisão deixam de ser desenvolvidas. Assim espera-se da boa mulher que seja boa esposa, e não bem-sucedida noutros termos. 

E fica claro ainda que não cabe a nós simplesmente taxar o papel da mulher como de coadjuvante, dependente e submetida ao homem (isso entra na análise da desorganização familiar), mas sim de reconhecer a importância das atividades que desempenha na colaboração entre homem e mulher, e quando preciso verificar quais tarefas a emancipam e quais a colocam em posição subalterna.

O filme é sincero, e deixa claro: à mulher velha e cansada cujo trabalho doméstico não é valorizado no mercado não sobram pretendentes, já ao homem bem-sucedido e disposto dispõe de todo um mundo de rejuvenescimento representado por jovens mulheres e uma farmacologia que suporta os desejos sexuais masculinos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário