quinta-feira, 28 de abril de 2016

diário pós aula de teoria crítica

Já fui tirado de existencialista, como se o ato de conscientemente refletir sobre ideias fosse reprovável. 

Quero saber com quem converso. Aqueles que, como alfaces, apenas existem e adquirem diplomas e passam pela vida sem nunca despertar, motivados pelos mesmos motivos que a galinha ao atravessar a rua: chegar ao outro lado; ou indivíduos que entenderam que esta vida, neste planeta Terra, o grande Salão do Sofrimento, não passa de apenas mais um episódio na incognoscível saga do espírito.

A música que ouvimos é um produto, e a letra da nossa canção favorita é apenas manifestação mágica levada a cabo por outro ser humano que idealizadamente poetizou  seu sonho inverídico; o cinema nada mais é do que delírio criativo viabilizado pela cifra de bilhões de dólares que portentosamente ditam o que devemos esperar do amor e da guerra, da política e do comércio, da sociedade e da essência do humano. 

Como reagir diante da constatação de que passamos pela sociedade de consumo amando o entretenimento com que nos servem, assim como personagens sado-masoquistas amam a jaula porque têm medo de a romper e caminhar pela densa névoa suspensa ao redor?

As ilusões multiplicam-se como espectros tridimensionais numa sala repleta de espelhos. A minha arte é triste, isolada, mas sincera - pois imput de bits nesta tela é pressionado pelo sangue dos meus dias que irriga a ponta desses dedos vermelhos de carne.

Sentado rígido à cadeira, contorço minhas costelas ociosas com um giro sobre o próprio umbigo, e sondo com olhar inquisidor a sala de aula, as cadeiras vazias e as pessoas esparsamente acomodadas nos assentos. Sinto que posso proferir palavras e entabular frases tão precisas e dignas a cada uma delas que, neste dia certamente, durante este momento, a garota resplandeceria diante do meu comentário indulgente, de curiosidade sincera e positiva.

(Sou um observador, pois me lembro dela a partir de outras aulas e de outras vidas. Sua presença segura, e a maneira como deixa cair seu braço esquerdo pelo pescoço da cadeira vazia, e seu cabelo em corte diferenciado, encantam-me. Sim: porque ela se virou para me ouvir respirar, e porque hoje me dirigi a ela e ela sorriu. Encanto-me quase que indiscriminadamente. Sou apaixonado por todas estas pessoas, pois elas existem. Comunico-me: miro seu pé enquanto o cabelo cai-lhe sobre os olhos - ela não me vê agora, mas tenho certeza de que neste momento nossas mentes travaram, telepaticamente, alguma comunicação.)

Mas como ela me vê quando estou de costas? E como ela avalia minha presença física na sala de aula? Tenho medo de que ela me estranhe. Gosto de imaginar este cômodo, visto de cima ou lateralmente, e me vislumbrar apenas como mais um estudante diante da lousa e do professor carrancudo. O mundo que acontece também fora dos meus pensamentos assiste ao meu corpo existir nesta sala. Existe não apenas para mim mas, solenemente, também para os outros. Aqui sentado sou apenas mais um - eu, indiferente de qualquer destas graciosas pessoas também sentadas, que pensam e sentem e adicionam sua benigna presença na sublime equação da harmonia.

Aniquilo meu ego e por conta disso eu murcho: não digo a ela nada do que poderia eu dizer para lha alegrar. Minha masculinidade é absente, como se o universo fosse ficar ofendido da ocasião em que eu infundisse e administrasse minha personalidade no momento. Sim, por que me envolver, já que tudo, afinal, vai correr bem sem mim? Já que ela vai enlaçar de volta nos ombros a bolsa, como sempre fez, e se levantar no horário habitual com o livro em mãos para abrir a porta e sumir da minha vista; já que o tempo flui e tudo passa, por que devo intervir?

Odeio quando me esvazio de mim mesmo, e sinto que no fluxo das ações que compõem o Universo minha (falta de) iniciativa é ora ditada, ora interrompida, pela impressão que suponho sentirem os outros sobre mim: todo o potencial da minha Vontade é solapado pelo que imagino que os outros seres humanos de carne e osso, com pensamento (vegetativo ou autônomo), entenderão da minha manifestação.

Murcho, volto para casa com pena e confuso, pois considerando a efemeridade das épocas, e maculado pela distância intransponível que se interpõe entre almas inconciliáveis em corpos apartados, sinto-me sozinho neste mundo em que tudo o que sou é um espírito, tudo o que tenho é um corpo e tudo o que me governa são sensações.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Quem sente com os olhos enxerga o perpétuo movimento do mundo exterior sem que se precise preocupar-se com pensamentos.

A moça velha respira e fala, enquanto espanta com um safanão, que levanta poeira do chão, o cachorro saltando assustado a olhar por sobre o flanco ao chinelo vermelho pálido e descascado.

O papagaio anda de costas papagueando palavras moídas enquanto seu globo ocular dilata-se a sondar abaixo e acima o espectro profundo do espaço. O cachorro vem a cheirá-lo, os dois estranham-se e quando o papagaio alça as garras contra seu focinho, o cachorro flexiona as pernas traseiras e abre sua boquinha de mamífero pronto para dar o bote.

Num momento o tempo fica como suspenso por apreensão.

A moça velha, que encarna neste quintal a vontade de seguir em frente, harmoniza suavemente o Universo como a diplomata da causa da vida, e o tempo se destrava quando o cachorro sai à caça da mosca flutuante no ar cálido da tarde esparsa.

O lençol tão rosa e nítido desperta volúpia chacoalhando contra o azul plácido do céu no varal de todos os dias.

Acima, só as nuvens cinzas e brancas deslizam.

Os movimentos acontecem, eu não quero pensar, mas só ver.

Pensar é estar triste.
Plano de carreira: tomar tanto doce até que, no irromper da catarse, eu aprimore qualidades humanas de empatia, comunicação e harmonização junto das pessoas, e desenvolva técnicas ao trato íntimo com as palavras, mas também nítida visão fotográfica (pinturas de luz). O produto desse trabalho será a capacidade de performatizar na vida, enquanto acordado, a realidade inconsciente do sonho dormido.

Se criamos um mundo durante o sono, por que não o fazer acordado?

Eis meu propósito: que seja eu o explorado pela demonstração da majestosa potência da consciência treinada. Sim, um exemplar Ocidental daquela virtude ameríndia que, pelo ritual do sonho encenado, harmoniza a realidade humana aos desígnios da vontade divina.

domingo, 10 de abril de 2016

Do o controle que os hardwares e softwares exercem sobre o comportamento do ser humano

O Brasil está tomado por dispositivos inteligentes conectados através de telefonia móvel de mensagens e imagens instantâneas. Destacadas daquilo que é concreto as pessoas têm como mais novo órgão do corpo orgânico os gadgets que as afastam de si mesmas para as aproximarem apenas virtualmente de seus semelhantes.

Embora as críticas a esse sistema existam, ninguém passa incólume a esta inversão da realidade em que a velocidade da troca de informações é tao nauseantemente absurda que numa vã aspiração à onipresença os indivíduos expõem-se e se projetam à ampla visualização.

"Sentindo-se o pica das galáxias e achando que tudo que faz é muita onda".

Tenho em mim este desconforto visceral que me faz cuspir no chão em desespero, e me proclamar contra esse sistema que cresce como um Leviatã de zeros e uns é ser taxado de antiquado.

Diante da efemeridade de tudo o que acontece, o mais novo fenômeno de exortação tecnológica é o sórdido hábito de registrar em fotografias das mais banais todo e qualquer acontecimento ignóbil, e as dispor em "redes sociais" como a dizer "não obstante a avalanche de tudo o que acontece, cá também estou eu!". E estes parvos seres humanos ainda se engrandecem de contentamento quando, no interior de tais programas, recebem "likes" e outros indicativos de aprovação virtual. Amigos virtuais, perfis virtuais, personalidades virtuais. Sim, coitados de todos nós! Quão insólito é viver nestes dias!

Sou apurado em meu diagnóstico?, ou essas impressões tão asseveradas são reflexo da minha condição psicológica desassossegada? Não: para mim esta realidade existe, vivo dentro dela e por ela sou cotidianamente abatido ao ponto de supor que se tão intensa inocuidade do indivíduo a que somos submetidos pelos softwares e apps não responde a premeditados interesses malignos, então a própria ideia de progresso é apenas um grande labirinto no interior do qual andamos como baratas tontas, chocando a testa na parede, sem saber se galgamos um futuro melhor ou apenas nos imiscuímos desorientados à espera da hora da morte.

Multidões no metro hipnotizadas por brilhantes telas celulares, apenas para desbloquear o smartphone, abrir um app qualquer e descer a tela à espera de alguma novidade que ele sabe que não está lá, para bloquear a tela de novo e repetir tudo dali a 2 minutos.

Sim, aguardo com fervor distópico o dia em que tais plataformas virtuais serão dissolvidas. Enquanto isso fico com vossos likes.

texto de tarde de domingo

Escrevo porque preciso, e preciso escrever porque existo. Existo ao escrever.

A inspiração não me vem de fora, mas do interior - a introspecção letrada dos sentimentos faz avivar-me alma. As palavras são acesso à compreensão de mim mesmo. Irrevogável tratado ontológico íntimo e próprio.

Aos 22 anos de uma existência banal (como todas as existências) e desacreditada (como algumas), excedo pela virtude da observação. O mundo social aparece-me a mim claro em suas motivações, embora tudo me chegue como vão e desnecessário. 

Não acredito no dinheiro tampouco no prestígio de finos panos. Vivo, desinteressado pelo mundo material, como sempre vivi, estimando a Harmonia. Se agora aparo a barba, e não me trajo mais com roupas maltrapilhas, não é para que me vejam como alguém que não sou, mas sim para que quando o transeunte olhe da calçada para meu corpo ocupando o banco da lotação ele não me estranhe como um alguém de presença disruptiva.

Não aspiro à "arte" nem tampouco à "literatura". Apenas acho que para ser bem entendido o melhor são minhas palavras ao invés do diálogo tenso, olho-no-olho, de pés inquietos e fala atropelada. E por isso não faz sentido que eu mostre este fragmento a ninguém, pois é íntimo e hermético - de interesse nulo a qualquer pessoa que não esteja interessada profundamente em mim mesmo.

E quem está legitimamente interessado em mim, além de mim mesmo? Está além da minha presunção a audácia de interromper o bem-correr das atividades cotidianas de amiga ou amigo para sugerir a leitura disso aqui.

E assim é melhor, pois escrevo sem me importar se vão aprovar. Neste parágrafo eu tenho o mundo. Alço voo e enquanto flutuo no ar minha sombra desloca-se horizontalmente no asfalto fosco. Tenho todo o panorama da cidade de São Paulo, e pouso sem solavancos no centro da Praça da Sé, mas hoje não há mendigos e indigentes. Ando acompanhado de meu amor ao meu lado e somos um. Não discordamos, e o caminho que ela quer fazer eu também quero, e o passeio acontece fluido sem que nos esgotemos ou percamos a paciência um com o outro. Sou mais um pai-de-família chinês que após o almoço fuma compenetrado e de pernas cruzadas na calçada da Liberdade, e o tabaco seco junto do café amargo nutrem-me o gosto do paladar.

Quem me leria? Se, mesmo quem já me amou, e sabendo que existe este sítio, nunca se dispôs a averiguar aqui os interstícios da minha alma,

se mesmo ela não me lê, quem me lerá?

Mas, então, como deveria de ser, senão assim mesmo? Ninguém me deve coisa alguma.

Oxalá quem me conhecesse acessasse, motivado pelo interesse no que sou, este domínio digital. Sim: escrevo pela necessidade de que me reconheçam, entendam-me e me estimem em minha desconexão tão humana. Escrevo para mim mesmo mas com a necessidade de que também os outros me acessem.

Não há Eu sem Outro.

Com pesar arrasto-me pelas horas, fumando cigarros para desbaratinar as ideias mais perversas que me invadem a consciência. Canso-me de me cansar com pensamentos opressores. 

Dissolvo-me na imensidão do Outro quando uma conversa agradável entabula-se entre mim e algum interlocutor. Desabrocho quando me surge a motivação para ler um livro ou se são abertas as portas da imaginação para assistir a um filme, ou a solicitude para descobrir pela primeira vez a sonoridade oculta de um álbum inédito. Sim, isto é deveras viver. Quando o tempo é suspenso e se desenlaça a fascínios.

De súbito a angústia transborda-me e minha alma fica nítida a mim. Corro escada acima para escrever e gloriosamente pontuo as palavras enquanto as primeiras chuvas caem do céu branco sem brilho. 

quinta-feira, 7 de abril de 2016

meu corpo está cansado. a água do banho cheira a parafina derretida, e há um vulto transparente me observando do outro lado do banheiro. a água que sai da torneira torneira é marrom, minhas mãos tremem e aquele rosto familiar me espia como uma boneca inflável por detrás do vidro da janela. eu subo as escadas sem olhar para trás.

domingo, 3 de abril de 2016

Diário de leitura: "O livro do Desasossego", Capítulo I: Uma autobiografia sem fatos.

fragmentos.

     e do alto da majestade de todos os sonhos, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa.
    Mas o contraste não me esmaga - liberta-me; e a ironia que há nele é sangue meu. O que devera humilhar-me é a minha bandeira, que desfraldo; e o riso com que deveria rir de mim; é um clarim com que saúdo e gero uma alvorada em que me faço.
     A glória noturna de ser grande não sendo anda. A majestade sombria de esplendor desconhecido... E sinto, de repente, o sublime do monge no ermo, do eremita no retiro, inteirado da substância do Cristo nas pedras e nas cavernas do afastamento.

   E na mesa do meu quarto sou menos reles, empregado e anônimo, escrevo palavras como a salvação da alma [...] anel de renúncia em meu dedo evangélico, jóia parada do meu desdém extático.

------------------

     Como uma esperança negra, qualquer coisa de mais antecipador pairou; a mesma chuva pareceu intimidar-se; um negrume surdo calou-se sobre o ambiente. E súbito, como um grito, um formidável dia estilhaçou-se. Uma luz de inferno frio visitara o conteúdo de tudo, e enchera os cérebros e os recantos. Tudo pasmou. Um peso caiu de tudo porque o golpe passara. A chuva triste era alegre com o seu ruído bruto e humilde. Sem querer, o coração sentia-se e pensar era um estonteamento. Uma vaga religião formava-se no escritório. Ninguém estava quem era, e o patrão Vasques apareceu à porta do gabinete para pensar em dizer qualquer coisa. O Moreira sorriu, tendo ainda nos arredores da cara o amareli do medo súbito. E o seu sorriso dizia que sem dúvida o trovão seguinte deveria ser já mais longe. Uma carroça rápida estouvou alto os ruídos da rua. Involuntariamente o telefone tiritou. O patrão Vasques esqueceu-se do telefone, que não tocara mais. O moço mexeu-se, ao  fundo da casa, como uma coisa incômoda.

     Uma grande alegria, cheia de repouso e de livração, desconcertou-nos a todos. Trabalhamos meio tontos, agradáveis, sociáveis com uma profusão natural. O moço, sem que ninguém lho disesse, abriu amplas as janelas. Um cheiro a qualquer coisa fresca entrou, com o ar de água, pela grande sala dentro. A chuva, já leve, caía humilde. Os sons da rua, que continuavam os mesmos, eram diferentes. Ouvia-se a voz dos carroceiros, e eram realmente gente. Nitidamente, na rua ao lado, as campainhas dos elétricos tinham também uma socialidade conosco. Uma gargalhada de criança deserta fez de cenário na atmosfera limpa. A chuva leve decresceu.
    Eram seis horas. Fechava-se o escritório. O patrão Vasques disse, do guarda-vento entreaberto, "Podem sair", e disse-o como uma benção comercial. Levantei-me logo, fechei o livro e guardei-o. Pus a caneta visivelmente sobre a depressão do tinteiro, e, avançando para o Moreira, e apertei-lhe a mão como depois de um grande favor.

------------------

     Quando outra virtude não haja em mim, há pelo menos a da perpétua novidade da sensação liberta.

    Descendo hoje a Rua Nova do Almada, reparei de repente nas costas do homem que a descia adiante de mim. Eram costas vulgares de um homem qualquer, o casado de um fato modesto num dorso de transeunte ocasional. Levava uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e pinha no chão, no ritmo de andando, um guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva na mão direita.

     Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem. Senti nele a ternura que se sente pela comum vulgaridade humana, pelo banal quotidiano do chefe de família que vai para o trabalho, pelo lar humilde e alegre dele, pelos prazeres alegres e tristes de que forçosamente se compõe a sua vida, pela inocência de viver sem analisar, pela naturalidade animal daquelas costas vestidas.
     Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos.

     A sensação era exatamente idêntica àquela que nos assalta perante alguém que dorme. Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sonho não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta.

     Ora as costas deste homem dorme. Todo ele, que caminha adiante de mim com passada igual à minha, dorme. Vai inconsciente. Vive inconsciente. Dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma ternura informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda vida social dormente, por todos, por tudo.

     É um humanitarismo direto, sem conclusões nem propósitos, o que me assalta neste momento. Sofro uma ternura como se um deus visse. Vejo-os todos através de uma compaixão de único consciente, os pobres-diabos homens, o pobre-diabo humanidade. O que está tudo isto a fazer aqui?

     Todos os movimentos e intenções da vida, desde a simples vida dos pulmões até à construção de cidades e a fronteiração de impérios, considero-os como uma sonolência, coisas como sonhos, ou repousos, passadas involuntariamente no intervalo entre uma realidade e outra realidade, entre um dia e outro dia do Absoluto. E, como alguém abstratamente materno, debruço-me de notie sobre os filhos maus como sobre os bons, comuns no sono em que são meus. Enterneço-me com uma largueza de coisa infinita.

     Desvio os olhos das costas do meu adiantado, e passando-o a todos mais, quantos vão andando nesta rua, a todos abarco nitidamente na mesma ternura absurda e fria que me veio dos ombros do inconsciente a quem sido. Tudo isso é o mesmo que ele; todas estas raparigas que falam para o atelier, estes empregados jovens que riem para o escritório, estas criadas de seios que regressam das compras pesadas, estes moços dos primeiros fretes - tudo isto é uma mesma inconsciência diversificada por caras e corpos que se distinguem, como fantoches movidos pelas cordas que vão dar aos mesmos dedos da mão de quem é invisível. Passam com toda as atitudes com que se define a consciência, e não têm consciência de nada, porque não têm consciência de ter consciência. Uns inteligentes, outros estúpidos, são todos igualmente estúpidos. Uns velhos, outros jovens, são da mesma idade. Uns homens, outros mulheres, são do mesmo sexo que não existe.

------------------

     Senti-me inquieto já. De repente, o silêncio deixara de respirar.

   Súbito, de aço, um dia infinito estilhaçou-se. Agachei-me, animal, sobre a mesa, com as mãos garras inúteis sobre a tábua lisa. Uma luz sem alma entrara nos recantos e nas almas, e um som de montanha próxima desabara do alto, rasgando num grito sedas do abismo. Meu coração parou. Bateu-me a garganta. A minha consciência viu só um borrão de tinta num papel.

------------------

     Pobres-diabos sempre com fome - ou com fome de almoço, ou com fome de celebridade, ou com fome das sobremesas da vida. Quem os ouve, e os não conhece, julga estar escutando os mestres de Napoleão e os instrutores de Shakespeare.

     Há os que vencem no amor, há os que vencem na política, há os que vencem na arte. Os primeiros têm a vantagem da narrativa, pois se pode vencer largamento no amor sem haver conhecimento célebre do que sucedeu. É certo que, ao ouvir contar a qualquer desses indivíduos as suas Maratonas sexuais, uma vaga suspeita nos invade, pela altura do sétimo desfloramento. Os que são amantes de senhoras de título, ou muito conhecidas (são, aliás, quase todos), fazem um tal gasto de condessas que uma estatística das suas conquistas não deixaria sérias e comedidas nem as bisavós dos títulos presentes.

     Outros especializam no conflito físico, e mataram os campeões de box da Europa numa noite de pândega, à esquina do Chiado. Uns são influentes junto de todos os ministros de todos os ministérios, e estes são aqueles de que menos há que duvidas, pois não repugna.

     Uns são grandes sádicos, outros são grandes pederastas, outros confessam, com uma tristeza de voz alta, que são brutais com mulheres. Trouxeram-nas ali, a chicote, pelos caminhos da vida. No ficam ficam a dever o café.

     Há os poetas, há os (...).

     Não conheço melhor cura para toda esta enxurrada de sombras que o conhecimento direito da vida humana corrente, na sua realidade comercial, por exemplo, como a que surge no escritório da Rua dos Douradores. Com que alívio eu volvia daquele manicômio de títeres para a presença real do Moreira, meu chefe, guarda-livros autêntico e sabedor, mal vestida e maltratado, mas, o que nenhum dos outros conseguia ser, o que se chama um homem...

------------------

     Hoje, em um dos devaneios sem propósito nem dignidade que constituem grande parte da substância espiritual da minha vida, imaginei-me liberto para sempre da Rua dos Douradores, do patrão Vasques, do guarda-livro Moreira, dos empregados todos, do moço, do garoto e do gato. Senti em sonho a minha libertação, como se mares do Sul me houvessem oferecido ilhas maravilhosas por descobrir. Seria então o repouso, a arte conseguida, o cumprimento intelectual do meu ser.

    Mas de repente, e no próprio imaginar, que fazia num café no feriado modesto do meio-dia, uma impressão de desagrado me assaltou o sonho: senti que teria pena. Sim, digo-o como se o dissesse circunstanciadamente: teria pena. O patrão Vasques, o guarda-livros Moreira, o caixa Borges, os bons rapazes todos, o garoto alegre que leva as cartas ao correio, o moço de todos os fretes, o gato meigo - tudo isso se tornou parte da minha vida; não poderia deixar tudo isso sem chorar, sem compreender que, por mau que me parecesse, era parte de mim que ficava com eles todos, que o separar-me deles era uma metade e semelhança da morte.

    Aliás, se amanhã me apartasse deles todos, e despisse este trajo da Rua dos Douradores, a que outra coisa me chegaria - por que a outra me haveria de chegar?, de que outro trajo me vestiria - por que de outro me haveria de vestir?

   Todos temos o patrão Vasques, para uns visível, para outros invisível. Para mim chama-se realmente Vasques, e é um homem sadio, agradável, de vez em quando brusco mas sem lado de dentro, interesseiro mas no fundo justo, com uma justiça que falta a muitos grandes gênios e a muitas maravilhas humanas da civilização, direita e esquerda. Para outros será a vaidade, a ânsia de maior riqueza, a glória, a imortalidade... Prefiro o Vasques homem meu patrão, que é mais tratável, nas horas difíceis, que todos os patrões abstratos do mundo.

     Considerando que eu ganhava pouco, disse-me outro dia um amigo, sócio de uma firma que é próspera por negócios com todo o Estado: "você explorado, Borges" [sic]. Recordou-me isso de que o sou; mas como na vida temos todos que ser explorados, pergunto se valerá menos a pena ser explorado pelo Vasques das fazendas do que pela vaidade, pela glória, pelo despeito, pela inveja ou pelo impossível.

    Há os que Deus mesmo explora, e são profetas e santos na vacuidade do mundo.

    E recolho-me, como ao lar que os outros têm, à casa alheia, escritório amplo, da Rua dos Douradores. Achego-me à minha secretária como a um baluarte contra a vida. Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um pouco para além de mim. Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar - ou talvez, também, porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como à grande indiferença das estrelas.

------------------

     Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente a de um homem com dor de dentes que houvesse recebida uma fortuna - a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) À alegria e à dor.

     Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!

------------------

     Às vezes, quando ergo a cabeça estonteada dos livros em que escrevo as contas alheias e a ausência de vida própria, sinto uma náusea física, que pode ser de me curvar, mas que transcende os números e a desilusão. A vida desgosta-me como um remédio inútil. E é então que eu sinto com visões claras como seria fácil o afastamento deste tédio se eu tivesse a simples força de o querer deveras afastar.

    Vivemos pela ação, isto é, pela vontade. Aos que não sabemos querer - sejamos gênios ou mendigos - irmananos a impotência. De que me serve citar-me gênio se resulto ajudante de guarda-livros? Quando Cesário Verde fez dizer ao médico que era, não o Sr. Verde empregado no comércio, mas o poeta Cesário Verde, usou de um daqueles verbalismos do orgulho inútil que suam o cheiro da vaidade. O que ele foi sempre, coitado, foi o Sr. Verde empregado no comércio. O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer que nasceu a apreciação do poeta.

    Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se não o fizerem ali?

------------------

    Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo [...], um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a sombra não por falta de boa alma mas para não ter que desabotoar o casaco [...]

    Escrevo, triste, no quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, cozinho como sempre serei. E penso se, a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha no destino quotidiano ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reação contra mim desce-me da inteligência. Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos Douradores, sinto-me com sono; olho, sobre o papel meio escrito, a vida vã sem beleza e o cigarro barato [...] sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste quarto andar, a interpelar a vida! a dizer o que as almas sentem! a fazer prosa [...]

------------------

     O patrão Vasques. Tenho, muitas vezes, inexplicavelmente, a hipnose do patrão Vasques. Que me é esse homem, salvo o obstáculo ocasional de ser dono das minhas horas, num tempo diurno da minha vida? Trata-me bem, fala-me com amabilidade, salvo nos momentos bruscos de preocupação desconhecida em que não fala bem a ninguém. Sim, mas por que me preocupa? É um símbolo? É uma razão? O que é?

    O patrão Vasques. Lembro-me já dele no futuro com a saudade que sei que hei de ter então. Estarei sossegado numa casa pequena nos arredores de qualquer cosia, fruindo um sossego onde não farei a obra que não faço agora, e buscarei, para continuar a não ter feito, desculpas diversas daquelas em que hoje me esquivo a mim. Ou estarei internado num asilo de mendicidade, feliz da derrota inteira, misturado com a ralé dos que se julgaram gênios e não foram mais que mendigos com sonhos, junto com a massa anônima dos que não tiveram poder para vencer nem renúncia larga para vencer do avesso. Seja onde estiver, recordarei com saudade o patrão Vasques, o escritório da Rua dos Douradores, e a monotonia da vida quotidiana será para mim como a recordação dos amores que me não foram advindos, ou dos triunfos que não haveriam de ser meus.

     O patrão Vasques. Vejo de lá hoje, como o vejo hoje de aqui mesmo - estatura média, atarracado, grosseiro com limites e afeições, franco e astuto, brusco e afável - chefe, à parte o seu dinheiro, nas mãos cabeludas e lentas, com as veias marcadas como pequenos músculos coloridos, o pescoço cheio mas não gordo, as faces coradas e ao mesmo tempo tensas, sob a barba escura sempre feita a horas. Vejo-o, vejo os seus gestos de vagar enérgico os seus olhos a pensar para dentro coisas de fora, recebo a perturbação de sua ocasião em que lhe não agrado, e a minha alma alegra-se com o seu sorriso, um sorriso amplo e humano, como o aplauso de uma multidão.

     Será, talvez, porque não tenho próximo de mim figura de mais destaque do que o patrão Vasques, que, muitas vezes, essa figura comum e até ordinária se me emaranha na inteligência e me distrai de mim. Creio que há símbolo. Creio ou quase creio que algures, em uma vida remota, este homem foi qualquer coisa na minha vida mais importante do que é hoje.

------------------

     A tragédia principal da minha vida é, como todas as tragédias, uma ironia do Destino. Repugno a vida real como uma condenação; repugno o sonho com uma libertação ignóbil. Mas vivo o mais sórdido e o mais quotidiano da vida real; e vivo o mais intenso e o mais constante do sonho. Sou como um escravo que se embebeda à sesta - duas misérias em um corpo só.

     Sim, vejo nitidamente, com a clareza com [que] os relâmpagos da razão destacam do negrume da vida os objetos próximos que nô-la formam, o que há de vil, de lasso, de deixado e factício, nesta Rua dos Douradores que me é a vida inteira - este escritório sórdido até à sua medula de gente, este quarto mensalmente alugado onde nada acontece senão viver um morto, esta mercearia da esquina cujo dono conheço como gente conhece gente, estes moços da porta da taberna antiga, esta inutilidade trabalhosa de todos os dias iguais, esta repetição pegada das mesmas personagens, como um drama que consiste apenas no cenário, e o cenário estivesse às avessas...

     Mas vejo também que fugir a isto seria ou dominá-lo ou repudiá-lo, e eu nem o domino, porque não excedo adentro do real, nem o repudio porque, sonhe o que sonhe, fico sempre onde estou.

     E o sonho, a vergonha de fugir para mim, a covardia de ter como vida aquele lixo da alma que os outros têm só no sono, na figura da morte com que ressonam, na calma com que parecem vegetais progredidos!

    Não poder ter um gesto nobre que não seja de portas a dentro, nem um desejo inútil que não seja deveras inútil.

     Definiu César toda a figura da ambição quando disse aquelas palavras: "Antes o primeiro na aldeia do que o segundo em Roma!" Eu não sou nada nem na aldeia nem em Roma nenhuma. Ao menos, o merceeiro da esquina é respeitado na Rua da Assunção até à Rua da Vitória; é o César de um quarteirão. Eu superior a ele? Em quê, se o nada não comporta superioridade, nem inferioridade, nem comparação?

     É César de todo um quarteirão e as mulheres gostam dele condignamente.

     E assim arrasto a fazer o que não quero, e a sonhar o que não posso ter, a minha vida (...), absurda como um relógio público parado.

     Aquela sensibilidade tênue, mas firme, o sonho longo mas consciente (...) que forma no seu conjunto o meu privilégio de penumbra.

------------------

     O relógio que está lá para trás, na casa deserta, porque todos dormem, deixa cair lentamente o quádruplo som claro das quatro horas de quando é noite. Não dormi ainda, nem espero dormir. Sem que nada me detenha a atenção, e assim não durma, ou me pese no corpo, e por isso não sossegue, jazo na sombra, que o luar vago dos candeeiros da rua torna ainda mais desacompanhada, o silêncio amortecido do meu corpo estranho. Nem sei pensar, do sono que tenho; nem sei sentir, do sono que não consigo ter.

    Tudo em meu torno é o universo nu, abstrato, feito de negações noturnas. Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensação do corpo um conhecimento metafísico do mistério das coisas. Por vezes amolece-se-me a alma, e então os pormenores sem forma da vida quotidiana bóiam-se-me à superfície da consciência, e estou fazendo lançamentos à tona de não poder dormir. Outras vezes, acordo de dentro do meio-sono em que estagnei, e imagens vagas, de um colorido poético e involuntário, deixam escorrer pela minha desatenção o seu espetáculo sem ruídos. Não tenho os olhos inteiramente cerrados. Orla-me a vista frouxa uma luz que vem de longe; são os candeeiros públicos acesos lá embaixo, nos confins abandonados da rua.

    Cessar, dormir, substituir está consciência intervalada por melhores coisas melancólicas ditas em segredo ao que me desconhecesse!... Cessar, passar fluido e ribeirinho, fluxo e refluxo de um mar vasto, em costas visíveis na noite em que verdadeiramente se dormisse!... Cessar, ser incógnito e externo, movimento de ramos em aleias afastadas, tênue cair de folhas, conhecido no som mais que na queda, mar alto fino dos repuxos ao longe, e todo o indefinido dos parques na noite, perdidos entre emaranhamentos contínuos, labirintos naturais da treva!... Cessar, acabar finalmente, mas com uma sobrevivência translata, ser a página de um livro, a madeixa de um cabelo solto, o oscilar da trepadeira ao pé da janela entreaberta, os passos sem importância no cascalho fino da curva, o último fumo alto da aldeia que adormece, o esquecimento do chicote do carroceiro à beira matutina do caminho... O absurdo, a confusão, o apagamento - tudo que não fosse a vida...

     E durmo, a meu modo, sem sono nem repousa, esta vida vegetativa da suposição, e sob minhas pálpebras sem sossego paira, como a espuma quieta de um mar sujo, o reflexo longínquo dos candeeiros mudos da rua.

      Durmo e desdurmo.

     Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o silêncio da casa toca no infinito. Ouço cair o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair. Oprime-me fisicamente o coração físico a memória, reduzida a nada, de tudo quanto foi ou fui. Sinto a cabeça materialmente colocada na almofada em que a tenho fazendo vale. A pele da fronha tem com minha pele um contato de gente na sombra. A própria orelha, sobre a qual me encosto, grava-se-me matematicamente contra o cérebro. Pestanejo de cansaço, e as minhas pestanas fazem um som pequeníssimo, inaudível, na brancura sensível da almofada erguida. Respiro, suspirando, e a minha respiração acontece - não é minha. Sofro sem sentir nem pensar. O relógio da casa, lugar certo lá ao fundo das coisas, soa a meia-hora seca e nula. Tudo é tanto, tudo é tão fundo, tudo é tão negro e tão frio!

     Passo tempos, passo silêncios, mundos sem forma passam por mim.

   Subitamente, como uma criança do Mistério, um galo canta sem saber da noite. Posso dormir, porque é manhã em mim. E sinto a minha boca sorrir, deslocando levemente as pregas moles da fronha que me prende o rosto. Posso deixar-me À vida, posso dormir, posso ignorar-me... E, através do sono novo que me escurece, ou lembro o galo que cantou, ou é ele, deveras, que canta segunda vez.

------------------

     Encaro serenamente, sem mais nada que o que na alma represente um sorriso, o fechar-se-me sempre a vida nesta Rua dos Douradores, neste escritório, nesta atmosfera desta gente. Ter o que me dê para comer e beber, e onde habita, e o pouco espaço livre no tempo para sonhar, escrever - dormir - que mais posso eu pedir aos Deuses ou esperar do Destino?

     Tive grandes ambições e sonhos dilatados - mas esses também os teve o moço de fretes ou a costureira, porque sonhos tem toda a gente: o que nos diferença é a força de conseguir ou o destino de se conseguir conosco.

     Em sonhos sou igual ao moço de fretes e à costureira. Só me distingue deles o saber escrever. Sim, é um ato, uma realidade minha que me diferença deles. Na alma sou eu igual.

     Bem sei que há ilhas ao Sul e grandes paixões cosmopolistas e (...).

     Se eu tivesse o mundo na mão, trocava-o, estou certo, por um bilhete para [a] Rua dos Douradores.

     Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livros, e a poesia ou a literatura uma borboleta que, pousando-me na cabeça, me torna tanto mais ridículo quanto maior for a sua própria beleza.

      Terei saudades do Moreira, mas o que são saudades perante as grandes ascensões?

     Sei bem que o dia em que for guarda-livros da casa Vasques e Cia. será um dos grandes dias da minha vida. Sei-o com uma antecipação amarga e irônica, mas sei-o com a vantagem intelectual da certeza.

------------------

     Hoje como me oprimisse a sensação do corpo aquela angústia antiga que por vezes extravasa, não comi bem, nem bebi o costume, no restaurante, ou casa de pasto, em cuja sobreloja baseio a continuação da minha existência. E, como ao sair eu [?], o criado verificasse que a garrafa de vinho ficara em meio voltou-se para mim e disse :" até logo, sr. Soares, e desejo as melhoras".
     Ao toque de clarim desta frase simples a minha alma aliviou-se como se num céu de nuvens o vento de repente as afastasse. E então reconheci o que nunca claramente reconhecera, que nestes criados de café e de restaurante, nos barbeiros, nos moços de frete das esquinas, eu tenho uma simpatia espontânea, natural que não posso orgulhar-me de receber dos que privam comigo em mais intimidade, impropriamente dita...
     A fraternidade tem sutilezas.

   Uns governam o mundo, outros são o mundo. Entre um milionário americano, com bens na Inglaterra ou Suíça e o chefe Socialista da aldeia - não há diferença de qualidade mas apenas de quantidade, Abaixo [...] destes, nós, os amorfos, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o mestre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, o moço de fretes que me fez ontem o recado, ou o barbeiro que me conta anedotas, o criado que acaba de me fazer a fraternidade de me desejar aquelas melhoras, por eu não ter bebido senão metade do vinho.

------------------

     Descobri que penso sempre, e atendo sempre, a duas coisas no mesmo tempo. Todos, suponho, serão um pouco assim. Há certas impressões tão vagas que só depois, porque nos lembramos delas, sabemos que as tivemos; dessas impressões, cerio, se formará uma parte - a parte interna, talvez - da dupla atenção de todos os homens. Sucede comigo que têm igual relevo as duas realidades a que atendo. Nisto consiste a minha originalidade. Nisto, talvez, consiste a minha tragédia, e a comédia dela.

     Escrevo atentamente, curvado sobre o livro em que faço lançamentos a história inútil de uma firma obscura; e, ao mesmo tempo, o meu pensamento segue, com igual atenção, a rota de um navio inexistente por paisagens de um oriente que não há. As duas coisas estão igualmente nítidas, igualmente visíveis perante mim: a folha onde escreve com cuidado, nas linhas pautadas, os versos da epopeia comercial Vasques e Cia., e o convés onde vejo com cuidado, um pouco ao lado da pauta alcatroada dos interstícios das tábuas, as cadeiras longas alinhadas, e as pernas saídas que sossegam na viagem.

     (Se eu for atropelado por uma bicicleta de criança, esta bicicleta de criança torna-se parte da minha história.)

     Intervém a saliência da casa de fumo; por isso só as pernas se vêem.

     Avanço a pena para o tinteiro e da porta da casa de fumo - [...] mesmo ao pé de onde sinto que estou - sai o vulto do desconhecido. Virá-me as costas e avança para os outros. O seu modo de andar é lento e as ancas não dizem muito [...] Começo um outro lançamento. Tento ver porque ia enganado. É a débito e não a crédito a conta do Marques (Vejo-o gordo, amável, piadista e, num momento, o navio desaparece [?]).  

------------------

     A vulgaridade é um lar. O quotidiano é materno. Depois de uma incursão larga na grande poesia, aos montes da aspiração sublime, aos penhascos do transcendente e do oculto, sabe melhor que bem, sabe a tudo quanto é quente na vida, regressas à estalagem onde riem os parvos felizes, beber com eles, parvo também, como Deus nos fez, contente do universo que nos foi dado e deixando o mais aos que trepam as montanhas para não fazer nada lá no alto.

     Nada me comove que se diga, de um homem que tenho por louco ou néscio, que supera a um homem vulgar em muitos casos e conseguimentos da vida. Os epiléticos são, na crise, fortíssimos; os paranoicos raciocinam como poucos homens normais conseguem discorrer; os delirantes com mania religiosa agregam as multidões de crentes como poucos (se alguns) demagogos as agregam, e com uma força íntima que estes não logram dar aos seus sequazes. E isto tudo não prova senão que a loucura é loucura. Prefiro a derrota com o conhecimento da beleza das flores, que a vitória no meio dos desertos, cheia de cegueira da alma a sós com a sua nulidade separada.

     Que de vezes o próprio sonho fútil me deixa um horror à vida interior, uma náusea física dos misticismos e das contemplações. Com que pressa corro de casa, onde assim sonhe, ao escritório; e vejo a cara do Moreira como se chegasse finalmente a um porto. Considerando bem tudo, prefiro o Moreira ao mundo astral; prefiro a realidade à verdade; prefiro a vida, vamos, ao mesmo Deus que a criou. Assim ma deu, assim a viverei. Sonho porque sonho, mas não sofro o insulto próprio de dar aos sonhos outro valor que não o de serem o meu teatro íntimo, como não dou ao vinho, de que todavia não me abstenho, o nome de alimento ou de necessidade da vida.

------------------

      Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-se. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou, ignorado humanamente, com a decência e naturalidade.

    Nada poderia indignar-me tanto como se no escritório me estranhassem. Quero gozar comigo a ironia de me não estranharem. Quero o cilício de me julgarem igual a eles. Quero a crucifixão de me não distinguirem. Há martírios mais sutis que aqueles que se registram dos santos e dos eremitas. Há suplícios da inteligência como os há do corpo e do desejo. E desses, como dos outros suplícios, há uma volúpia.

------------------

Sobre a técnica cut-up de Burroughs

Burroughs imediatamente começou a experimentar com isso como uma maneira de produzir interferência sobre o mundo da comunicação opressiva que ele denominou "controle". Você vai concordar, Burroughs acreditava que a linguagem e a imagem eram virais e que a disseminação em massa de informações era um aspecto de uma arqui-conspiração que restringia o potencial completo da mente humana. Com o cut-up, Burroughs encontrou meio de escape; um antídoto à doença das mensagens de "controle" que mudam seu conteúdo original. Se a mídia de massa já funcionava como uma enorme barragem de material cut-up, o método cut-up era uma maneira de o artista reagir usando as mesmas táticas, uma maneira de penetrar na camisa-de-força da linguagem.
Isto é, as informações que nos chegam pelos jornais e mídia de massa são cortes realizados sobre a realidade e embalados para consumo. Uma realidade alternativa é criada nesse processo que mistifica o cotidiano e se retro-alimenta através da concordata dos seres humanos regulares.

Ideia: fazer cut-up em vídeos do César Trali.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Algumas diretrizes do Thee Temple ov Psychick Youth - magia: disciplina, energia sexual, ritual



Disciplina

A voluntária renúncia da responsabilidade por nossas vidas e ações é um dos maiores inimigos do nosso tempo.

Estamos perpetuamente condicionados, incentivados e chantageados à auto-restrição em percepções mais estreitas de nós mesmos, da nossa própria importância, do nosso próprio potencial e de nossa própria experiência. Somos treinados para ignorar a evidência de nossos sentidos e experiência, e a sentir culpa quando vislumbramos visões de nós mesmos como espíritos livres.

Sexo


De todas as coisas que as pessoas fazem, em casa e em privado, geralmente com amigos próximos, o sexo por si só está sujeito a interferências extraordinárias e ao controle de forças externas. Isto não é acidente. Eles reconhecem o seu poder. Mesmo que apenas por alguns momentos, os indivíduos são capazes de  libertar poder e energia internos que tornam todo o sistema da sociedade, ou de regime, sem sentido. É um libertador. Mesmo um indivíduo em confinamento solitário consegue indulgência nisso e em suas fantasias pode viajar para qualquer situação de possibilidades irrestritas, e, ao momento do próprio orgasmo, estar extaticamente vulnerável e inegavelmente livre, em qualquer lugar, repleto de energia.

Acreditamos que é essencial, se quisermos sobreviver e progredir, que, primeiro, reconheçamos, aceitemos e, finalmente, alcancemos os nossos verdadeiros desejos sexuais. Isto não só satisfaz o corpo e consolida o espírito, mas age como um exemplo para todos os nossos objetivos em todas as áreas da vida, e ataca a raiz do controle. O controle começa com a sexualidade, por isso parece crucial para começar neste ponto universalmente aplicável e desenvolver a nossa consciência a partir dele.

Mas em larga escala abrangendo ambos os sexos, a repressão dos instintos sexuais faz com que as pessoas tornem-se submissas e inclinadas ao comportamento irracional, e desta forma tendo paralisado seu potencial comportamento comportamento rebelde. Em um nível profundamente pessoal, onde adentramos o domínio de tais energias que poderiam ser chamado de 'magickal', o efeito de tal condicionamento não é menos significativo. A energia psíquica e energia sexual são nomes diferentes para a mesma força: livrando-nos das restrições e das formas de controle que foram impostas em nós poderemos adentrar por nós mesmo em mais que um plano.

Ritual


A maioria dos iniciados no Templo acreditam que há um poder e efeito liberados por um orgasmo, focado através da Vontade, que aumenta não só as chances de auto-realização e satisfação, mas também a realização de metas criativas: que a força deste processo força a mão do acaso e aproxima o objeto de seu desejo.

Qualquer ritual é uma forma de concentrar e focalizar os participantes em um objetivo ou ideia particular. É essencial apenas que as técnicas empregadas tenham significado e vitalidade para os participantes. Visto sem esta crença, como muitos rituais registradas do passado estão agora, o processo pode parecer simplesmente ridículo, e a repetição mecânica deles certamente o seria.

Símbolos (sigils) servem como um meio direto para fazer o que você quer que aconteça mais provável de acontecer. Mas eles são bastante diferentes dos sistemas baseados na fé e falsas promessas. Eles não podem garantir nada; eles só podem ajudá-lo libertar potencial que já existe dentro.

É uma maximização dos poderes do cérebro, uma união consciente e subconsciente da vontade, para que através do uso de símbolos (sigils) o Indivíduo possa mover-se em direção a uma meta desejada, livre do constrangimento imposto por objetivos confusos e contradições pessoais.