quarta-feira, 1 de março de 2017

Consideração suicida

Ouvindo a última peça musical do compositor erudito cuja morte prematura o impediu de apreciar sua própria obra, eu escrevo agora com um demônio tocando violino ao pé da minha cama, e racionalizo o seguinte:

Se eu viesse a por um fim à minha própria vida - sendo minha existência humana tão pequena, quem ou o que seria alterado pela tragédia? Sim, o desaparecimento da minha pessoa nada afetaria a organização da política mundial, nem a composição do solo que faz as sementes germinarem,  nem os habitats e ecossistemas naturais que sustentam a vida selvagem, muito menos a distribuição de renda na sociedade econômica, e nem tampouco as instituições de caridade que buscam fazer deste solo terráqueo um mundo melhor para aqueles que têm gosto de viver.
Vivam e gozem aqueles que assim o querem, mas por que, Deus, nós, os malditos, devemos ser obrigados a viver a vida não como desafio, mas como fardo?
Mas há a família, que seria alterada. Minha avó, coitada, que tanto luta contra dores e todos os dias se mostra firme para a vida, ela perderia uma das suas razões de continuar; minha mãe, também, acordaria com um motivo a menos para se levantar da cama, e com um fardo moral gigantesco sobre as costas; minha jovem irmã perderia um exemplo, e minha tia perderia um amigo. Todas elas se perguntariam "onde foi que eu errei?".
Que não me julguem, vocês, pois o alcoolismo, tabagismo e psicodelismo desenfreados  que praticam consistem em suicídio crônico!
Mas considerando agora que os estágios do luto são passageiros, e que o pesar psicológico das dores morais perdurariam por, no máximo, o tempo de vida de cada uma das pessoas desta pequena família, que enfim também voltará ao pó, o meu suicídio teria implicações apenas sentimentais e seria eventualmente esquecido.

Mas agora também penso que, talvez, a existência minha, neste Universo, cá no planeta Terra, nutrido por este solo de meu Deus, tenha, enfim, um sentido. E este é que a tragédia da minha vida seja observável àqueles que choram de barriga cheia, e constitua, naqueles cujas situações objetivas de vida sejam superiores às minhas, um espelho reflexivo de auto-consolo. Para quem naturalmente sofre com o tédio, a necessidade de ostentação de suas posses, a excessiva cobrança em relacionamentos, a falta de liberdade dentro da família, pense em alguém órfão, de frágil saúde psíquica, sem herança nem carreira profissional que seja frutífera, vítima diária da solidão, que traz consigo sua parceira inseparável, a melancolia, a qual, imbatível por dias a fio, e somada à revolta complacente da auto-piedade, engrossa e se turva em morbidez. Assim estou eu.

Todas estas racionalizações respondem aos aspectos materiais da consideração suicida, mas e quanto aos aspectos do Oculto? O demônio ao pé da cama diz que o inferno é cá na Terra mesmo, e que, tanto antes quanto depois da vida, nada, apenas a escuridão, existe; mas ele não poderia estar mais enganado: vive iludido pela manifestação maiávica do mundo material, cuja compreensão humana necessariamente precisa diferir, dualmente, entre antes versus depois, ou vida versus morte, quando, na realidade transcendental, está claro para os sábios, santos e meditadores de todo os tempos que o mundo material, assim como nosso corpo, não são tão sólidos quanto parecem ser, e de que existe um contínuo de densificação - em nível cósmico mas também individual - do espírito, que é eterno, em matéria, que é transitória e constitui, na verdade, a manifestação ilusória da Realidade Suprema mais sutil, de maneira que meu suicídio seria altamente nocivo para o próprio espírito que expressa nesta carne do meu corpo certas qualidades imemoriais adquiridas através de nascimentos sucessivos, pela regulação universal da lei do Karma, para constante aperfeiçoamento da alma caída, em rumo de volta ao Supremo.

Mas isto não me consola, apenas estabelece um peso, um fardo metafísico que, longe de me libertar, me amedronta e me prende aqui, asfixiado, nesta vida ingrata e decadente, de falta de apetite e desmaios, de insônia e masturbação com pornografia à hora morta da madrugada.

Apenas eu tivesse mais coragem para enfrentar a vida, ao invés de passar o tempo me dignificando a uma rotina de auto-policiamento e isolamento, que acaba por me atrofiar...

Apenas eu fosse ignorante ou preguiçoso e corajoso o suficiente para abraçar o demônio e apontar a pistola...

Apenas eu tivesse um serviço para empregar meu tempo e me matar de trabalhar, de uma maneira que não me sobrasse tempo para uma consideração suicida, mas sim tempo cronometrado para tirar a bota apertada, sentar com minhas pessoas na sala de jantar e dizer "querida, aqui temos a fartura", com ar de quem sabe que é digno e não precisa de esforço discursivo para que os outros reconheçam nele o próprio valor. É pedir demais?

Apenas eu soubesse como nutrir uma esperança...



(Este texto suave, que ninguém lerá, foi escrito para que o lessem e, sensibilizados pelo meu lamento sincero, me oferecessem consolo: um carinho, cafuné, um beijo; mas ninguém me acariciará, me consolará, me beijará.)

Um comentário:

  1. Eu li o texto. Compreendo a melancolia e a dificuldade existencial. Espero que sirva de algo.

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