domingo, 20 de setembro de 2015

Etnografia da minha visita à Galeria do Rock, no bar do China - Sábado - 19/09/2015 - dedicada a Luca


Ontem tive algumas horas de tempo livre no centro de São Paulo. O passeio que fiz com minha mãe e irmã à Pinacoteca terminou mais cedo do que o previsto, e às 14h30 elas desceram as escadas da estação da Luz e foram embora. Eu precisava arranjar alguma coisa para fazer até as 18h, quando deveria estar na Saúde para a reunião na casa do Bassi. Sozinho, no centro de São Paulo, sem muita opção de rolê, comecei a passear.

Na calçada da Rua Cásper Líbero fui afetado pela excitação dos sentidos causada pela mobilidade da cidade. Como um flâneur passei observando a casa do norte, os negros vendedores de relógio, e o sem-número de bares, dos quais a visão da cerveja gelada impregnou-se em mim e silenciosamente guiou meus passos. Irromperam pela calçada dois travestis falando "é aqui", sumindo porta adentro de um comércio e deixando perplexo o homem que mais ao lado descansava sentado na calçada. Falou "esse aí é viado mesmo", e o passante à sua frente concordou, adicionando, enquanto avançava os passos, algumas palavras que causaram o riso de ambos. Continuou a andar, e eu também.

Fui sendo levado pelos meus passos. Atravessei a Cásper Líbero e em frente à Paróquia Nossa Senhora da Santa Ifigênia acontecia um show ao vivo de música sertaneja. Algumas pessoas assistindo sentadas em cadeiras, com mesas devidamente resguardadas por guarda-sol. Ao lado, algumas tendas levantadas na calçada ofereciam alimentos e bebida. Parei um pouco para apreciar aquela ocasião, pensei brevemente em ficar mas não hesitei em recusar a mim mesmo o convite: o Sol estava muito forte, e a música não era particularmente do meu gosto. Continuei então andando.

Pela Antônio de Godói segui em frente. A sombra dos altos prédios desta rua é projetada extensamente em sua larga calçada, configurando um bom lugar para descanso e cochilo daqueles que têm as ruas como lar. A ideia de que eu queria ir à Galeria do Rock nestas horas livres de que dispunha foi sendo delineada em minha consciência. Então me encaminhei à adega a mim apresentada outrora (há 9 meses) por Gabriel e Amon, dois jovens com quem naquele dia colei e pedi alguns tragos do vinho que compartilhavam entre eles na frente da Galeria. O Gabriel eu nunca mais vi, o Amon é frequente ali naquela área, mas nunca de novo me aproximei para conversar com ele. 

Entrei na adega, que felizmente estava ainda de portas abertas, enquanto alguns dos comércios ao lado já fechavam suas portas, e comprei por R$ 3,50 um composto alcoólico Cantinho do Vale, que passa muito bem por vinho. Decidi  que ia entrar numa brisa e provavelmente conseguir algum contato para redigir a etnografia.

Bebericando do meu vinho encaminhei-me para entrada da Galeria, na Avenida São João. Parado lá por alguns segundos reparei o intenso fluxo de compradores. Propriamente na calçada se reuniam pessoas de ambos os sexos, com recorte de idade aparente também amplo, ostentando visuais de diversos estilos de rock, que não arrisco descrever. Da próxima vez contarei com recursos fotográficos dada a importância do estilo neste tipo de sociabilidade que além de urbana envolve também o ostento de camisetas gangues, bandas, tatuagens, bottons, etc que fazem as pessoas reconhecerem umas as outras imediatamente no rolê.

Foi o caso de Rafael, com quem já conversei algumas vezes e que no entanto nunca lembra meu nome. Avistei-o em um grupo de 5 homens, fumando cigarro e tomando cerveja. Diante dele, um homenzarrão de cabelos longos, óculos escuros e braços fortes tatuados expostos pela regata da banda Morbid Angel, esfumaçando um cigarro de forma praticamente cinematográfica. O homem estava acompanhado por uma mulher loura totalmente vestida de preto. Quando Rafael reconheceu a banda estampada na camiseta do homem, passou a cantar alto na calçada os urros guturais do vocalista, depois passando a reproduzir o solo de guitarra com a voz, e fazendo gestos com a mão que mimetizavam o dedilhamento de uma guitarra. Rafael fez comentários efusivos mas aparentemente o grandão não deu muita atenção, falou pouco e definitivamente não sorriu. 

Eu que já estava suando pela testa, e não havia conseguido nenhuma interação ali do lado de fora, pois achei os grupos fechados, decidi sair da calçada e andar alguns metros para entrar no bar do China (Lanchonete Kuroda), localizado no andar térreo da Galeria do rock. Comprei um Litrão de Subzero, que o China vende ao modesto preço de R$ 6,00. Por volta das 15h do Sábado o bar que já é pequeno estava além disso lotado. Então com minhas duas garrafas de álcool na mão costurei caminho por entre pessoas e cadeiras procurando alguma cadeira no interior do salão para que eu pudesse sentar. Ao fundo do bar havia alguns poucos lugares vagos, mas senti que a interação lá seria restrita aos grupos já formados, e a ocasionais conversas entre pessoas de uma mesa e outra.

A organização espacial das cadeiras das mesas, e das pessoas nas cadeiras, é importante e delicada. No estreito salão a mesa central é bastante competida, e como os usuários levantam bastante para ir à calçada fumar cigarro acontece de eles voltarem e seus lugares estarem ocupados por outros. Mesmo sem cadeira eu então me aproximei de uma borda da mesa, depositei minhas duas garrafas, e fiquei de pé por um tempo tomando minha cerveja. Não conhecia os outros dois que estavam do meu lado também de pé e conversavam com Rafael (que havia deixado a calçada e entrado no bar), e para piorar eu nem me apresentei (depois que vim ser apresentado pelo Rafael ao Mega(de Megadeth, banda de metal) vi que não adiantaria eu me introduzir àquele tipo de atitude tão indiferente).

Enfim, como a situação ficou constrangedora para mim, deixei a garrafa na mesa e fui com o copo na mão ao balcão. Felizmente naquela hora alguém se retirou, e eu pude encontrar lugar para me fixar. Quando voltei à mesa para buscar as garrafas e lavá-las ao balcão, os sujeitos que lá ficaram estavam servindo-se da minha cerveja. Provavelmente pensaram que não tinha dono, ou sabiam que tinha dono e não se sentiram impedidos por isso, ou queriam mesmo arrumar confusão.

Em resumo: para evitar discussões, e me sentindo bem vulnerável - para dizer a verdade - esperei que eles depositassem de volta na mesa a minha cerveja, trouxe-a para o meu lado da mesa e me servi. Foi neste momento que outro cara chegou em mim, se apresentou como Luca e me ofereceu uma cadeira. Simpático, desde o primeiro momento deixou evidente que estava interessado em conversar comigo. Me perguntava o que "você acha?" "Ô Leonardo", "Ô Léo, posso te chamar de Léo, porque...". Colou em mim. Ficou sabendo que eu fazia Ciências Sociais, falou de Fernando Henrique Cardoso. Cantou "música dark" que ele compunha. Falou que era simples: só se precisava de inspiração. Cantou RPM, banda em que seu tio tocava antes de se suicidar. E desde então demonstrou extenso conhecimento musical. Apresentou sua gangue "Funeral Punk", da qual era o "último representante da nova geração." Disse que trabalhava como garçom. Estava com um paletó por cima de uma camisa pólo branca, calça e sapato sociais: no dia anterior tinha se apresentado a um exame admissional. Seu rosto branco estava permanentemente suado.

Conversando com o Luca fiquei sentado na mesa central diante dos tipos que se serviram da minha cerveja. Alguma interação lampejou entre mim e Rafael, e ele me apresentou a Mega, grande amigo seu, alegadamente pela primeira vez no bar (o homem que eu havia flagrado com minha cerveja na mão).

Então conversamos, e eu procurei fazer perguntas: se eles gostavam do bar porque ali se reunia quem era do rock. Ao passo que o Mega me interrogou: o que era rock? E aí fui eu explicar minha visão do rock: "sexo, drogas e rock'n'roll". Falei de metal, de "música pesada". Citei bandas: Slayer, Venon e Iron Maiden, as quais todos ali conhecem, mesmo que suas roupas não evidenciem (tanto Rafael, quanto Mega, e o outro rapaz (L) não estavam ostentando visual de estilo rockeiro nesta ocasião). 

Naquele momento eu precisava que me aceitassem como uma pessoa que tem as credenciais mínimas para estar ali naquele bar e conversar de igual para igual. Embora eu estivesse vestido com a roupa do passeio à Pinacoteca (regata cinza, bermuda marrom e bota própria para trilhas), além de cabelo preso com grampos visíveis, sinto que o meu visual não atrapalhou a interação. De certo, em outras ocasiões já aconteceu de me interceptarem para falar bem da banda estampada na minha camiseta, e isso gera empatia e premissa para assunto. O que marcou de verdade a interação foi talvez minha falta de conhecimento das regras envolvidas na interação para aquelas mesas, bem como minha visível curiosidade.

Quanto às regras: percebi o agenciamento de uma atitude agressiva por parte dos presentes. Mesmo Luca, absolutamente simpático quando conversando comigo, em momentos sentiu que precisava se impor e gritou ameaçadoramente a L.

A situação foi a seguinte: Luca estava me mostrando uma foto de sua namorada, com quem estava desentendido, quando L falou alto: "você fica mostrando foto da sua mina pros outros? Pra mim isso é coisa de homem corno". O que para mim seria uma brincadeira seguida de risos constrangidos, para Luca foi uma ofensa insuportável. Apontou o dedo na direção de L e falou "pelo menos eu tenho mina, não fico sem mina que nem você. Dá pra ver que você tá sem mina pela forma como você se porta". O comentário de Mega de tão cru e revelador chega a ser engraçado: "Ó os caras querem brigar, se fosse eu, eu brigava".

De fato, a atitude de L estava me incomodando bastante: cruzava as pernas sobre a mesa, despejava o resto da bebida dos copos no chão, se envolvia com Mega em torturas na região da nuca e o feria no braço com socos que estalavam muito forte, e entre uma brincadeira e outra inclusive deixou escorregar da mão e esfacelar no chão o segundo Litrão que comprei a pedido de Rafael (com quem dividi o pagamento), pois estava à espera de seu amigo Renato e queria colocar uma cerveja gelada para ele tomar quando chegasse. Em primeiro momento as brincadeiras e gritos de L em direção a Mega chegaram a me assustar e causar sensação de insegurança, já que eu não sabia que se tratava de duas pessoas já conhecidas (e não de estranhos), e que aquela agressividade era prevista pelo código de amizade.

Depois de algum tempo Luca comentou sobre L "esse cara é muito chato mas sabe que tem que cuidar de mim. Por mais chato que um cara seja, se ele for da sua gangue, ele é obrigado a cuidar de você". E assim eu vislumbrei a como Luca poderia estar experimentando aquele ambiente como permeado por redes invisíveis de filiação a gangues e reconhecimento mútuo. 

Noutro momento, quando já havíamos trocado de lugar dentro do bar, um homem C (que quando cheguei estava num grupo particularmente animado mas com olhar torpe e distante, e que depois de algum tempo dormiu e acordou sentado sozinho na mesa - literalmente perdeu o bonde) sentou-se conosco após acordar. Foi apresentado por algum daqueles com quem já havíamos trocado alguma conversa. A introdução é feita de forma breve e significa converse com ele: e se dize assim: "fulano é gente boa". Pois bem, conversávamos eu e Luca com esse gente boa, que deixava visivelmente claro que havia excedido na bebida: não parava de cuspir no chão do bar e cambalear. A nossa conversa fluiu para os estilos reggae e dub, e Luca, que não dominava esses gêmeros. preferiu continuar mostrando para mim vídeos no YouTube pelo celular, desta vez da banda post punk brasileira Nenhum de Nós (mesmo que eu estivesse claramente me empenhando em conversar com C sobre Yellowman e King Tubby). Em dado momento C tentou servir-se do restante do meu vinho sem no entanto dividir comigo nem com Luca, que ficou enfurecido, levantou a voz para se impor e dirigiu ofensas e palavras de ordem a C, que pediu desculpas e despejou de volta um pouco do líquido no meu copo. Depois também, C inclusive nos ofereceu cerveja.

Então quanto às regras posso dizer que a imposição da vontade alia-se à justiça (o que é certo, é certo...) para proteger a honra do homem Luca num caso, e para instaurar a reciprocidade, no outro. Assim sinto que ao ver Mega com minha garrafa de cerveja era esperado que eu me impusesse e o fizesse reconhecer que eu também tinha ímpeto, apesar da roupa estilo à passeio.

Quanto à curiosidade, foi o que disse a outra figura com quem conversei bastante (I), um tipo mais velho que os já citados, de cabelos longos, camiseta de uma banda que não pude identificar, muitas tatuagens e argolas pesadas na orelha.  Apesar de sua aparência intimidadora, (diferente de L e Mega, que intimidavam por suas atitudes) I de pronto também começou a conversar comigo, em certos momentos disputando minha atenção com  Luca. Certamente gostou da atenção que lhe dispensei, aguardando calmamente que terminasse suas frases concatenadas de forma sempre lenta e terminadas com um "tá ligado?" que buscava conferir a qualidade da compreensão. Iniciou assunto falando que eu parecia o Nando Reis, e gostou de que eu me esforçava para continuar suas ideias tão desconexas e de ocasião. Chegou a falar de Hitler, conversamos sobre Metallica, pagou uma cerveja para mim e C, e em certo momento falou:  "você gosta de fazer perguntas", rindo e expondo seu dente dourado.

Luca, que na ocasião havia ido até a calçada fumar, voltou quando eu conversava com Rafael e Renato (muito aguardado por Rafael). Renato contava sobre uma festa de amigo seu em que compareceram panicats. E foi quando Luca chegou. Querendo aderir à roda de conversa que se formou enquanto ele estava fora, teve a infelicidade de comentar: "Panicat porque você chega dando ideia na mina e ela entra em pânico?". Eu ri, mas Renato não gostou e pôde então se prevalecer: iniciou o modo agressivo, foi assertivo em dizer que Luca havia caído de pára-quedas na conversa, e que queria desvirtuar o papo. A situação ficou pequena para Luca, que diante do meu silêncio - que confirmou tacitamente seu ostracismo - voltou para a calçada. Não o vi mais naquele dia.

Vejo agora o que eu poderia dizer para apaziguar a situação : "Mas, não, o Luca é meu amigo, o Luca é gente fina. Chega aí, Luca!" Quando Luca saiu o comentário de Rafael a Renato foi claro: "se você quiser, você arregaça ele". Foi Renato, inclusive, que um pouco antes também se dirigiu com atitude intimidadora a um homem que havia tomado seu lugar na cadeira enquanto tinha se retirado brevemente. O homem levantou e devolveu o assento sem maiores discussões.

E ainda sobre o que poderia ter dito mas fui incapaz diante de tamanho estranhamento e choque lembro da interação com Mega e L, quando os inqueri sobre brigas, perguntando jocosamente se eles não iriam querer brigar comigo, ou se eles quebrariam uma garrafa de vidro no pescoço de alguém, ao passo que Mega me perguntou se eu gostava do mal.  Respondi que acreditava na lei do karma. "O que é karma?", perguntou Mega. Respondi que é a ideia de que as ações que a pessoa faz voltam para ela em suas consequências. "Pau no cu do karma", respondeu Mega. Vejo agora que a pergunta sobre o mal era um ensejo muito interessante para falar de Satanismo, um tema tão caro ao metal.

Ainda sobre brigas, levanto a curiosidade sobre efeitos psicóticos da cocaína, usada de forma intensiva e corriqueira nos banheiros do bar. Em outras visitas tive relatos que afirmavam haver traficantes na própria galeria, o que Rafael e Renato disseram haver mudado. Deve ser por isso então a demora que experimentava para receber a droga que havia pedido, queixando-se algumas vezes em voz alta e coçando aa cabeça que: "o menino ainda não voltou com minha farinha".  Perguntei para Rafael e Renato se os frequentadores desse rolê "estavam ali pelo pó", e Rafael, já com narinas ranhentas e brancas, prontamente falou que 90% estavam, e Renato foi mais drástico:  "vish, eu acho que 98%". E o que se desenvolveu a partir desse assunto é que o indivíduo cheira, fica virado e depois "acaba apanhando".  Foi diante desse assunto que  Rafael pediu para que Renato "salvasse uma de 10", tocando sua mão, e indo ao banheiro com o pino recém conseguido.

Ainda quanto à circulação de droga dentro do bar, em dois momentos veio a mim um homem de testa suada pedindo cinquenta centavos "para comprar", e fazendo um gesto com o nariz deu umas fungadas. Em troca dos meus cinquenta centavos me deu uma caneta, que recebi com expressão de incompreensão. Neste momento I pediu para que eu pintasse com os pêlos brancos de sua barba, pedindo para "não zuar", e assim eu colori sua barba, numa situação que produziu proximidade e confiança.

Nesse momento já começavam a ser arrastadas pilhas de engradados de cerveja pelos lados e por detrás das mesas, e ficar confortável estava ainda mais difícil. O funcionário da empresa de logística justificava, para que sua sua insistência em conseguir espaço não fosse mal-entendida: "dá uma licencinha pra gente, pra vocês beberem a gente primeiro tem que entregar,né?". O chão, que já estava molhado desde que eu havia chegado, a essa altura do campeonato estava tomado por uma meleca de água, cerveja, saliva e sujeira trazida pelos calçados numerosos usuários, que entravam e saíam a todo tempo para ir ao banheiro, também tendo que ganhar algum espaço por entre os cotovelos e costas daqueles que se encontravam sentados, numa proximidade causada pela estreiteza que possibilita inclusive breves conversas entre os diferentes atores.

Não saí de dentro do bar naquelas quase 3 horas de observação participante. E como Luca havia sido ostracizado há algum tempo, comecei a conversar com um rapaz pelo qual me interessei quando o ouvi lamentar em voz alta: "Por isso eu não gosto de vir aqui, um lugar de merda!". Depois de alguns dedos de prosa, conversando sobre as tão insinuadas brigas que acontecem ali Rodrigo confessou que era gay, e que de certa forma estava alheio àquelas atitudes pois mantinha "a defensiva", embora em algumas ocasiões tenha sido necessário até a ele se impor:  "no final eles te pegam em um momento que você não quer apanhar e...".

Fiquei surpreso com o fato de uma pessoa dessa orientação sexual ter aceitação em grupos nos quais o ideal macho é tão forte. Quando manifestei minha opinião sobre o assunto, e mencionei a palavra masculinidade, Rodrigo sentiu um lampejo de compreensão, riu bastante e falou contentemente "Nossa! Alguém que me entende!", e realizamos um sincero aperto de mãos. O papo com ele estava interessante. Disse que tinha certeza que eu era ator! Vai entender... Convidou-me para ir lá fora fumar um cigarro,  mas neguei o convite pois tinha que estar na saúde às 18h.

Foto tirada por volta das 17h30. Da esquerda para a direita: conhecido de Rafael que havia acabado de chegar, eu, Rafael e Rodrigo. O bar já estava mais vazio à medida que as pessoas se retiravam para ocupar as calçadas. Foto clicada por uma das seletas garçonetes do bar.

À hora da minha saída, às 17h40, a calçada estava definitivamente preenchida por uma massa muito grande de rockeiros, que não percebiam mas na união de suas diversas rodas de conversa especificas formavam um todo visualmente homogêneo e volumoso. Da próxima vez quero investigar o circuito do rolê, especialmente depois que o bar do China fecha e os pedidos de "descer para o bar do Bin" começam a se multiplicar entre as pessoas. 

Bar do Bin e depois aonde? O rolê também pode acabar (ou começar para valer...) na casa de alguém. L por exemplo me informou que mora a alguns minutos do bar do Bin. Quais outros estabelecimentos comerciais recebem o público que compartilha dos símbolos do rock? Eles são específicos ao rock ou gerais? É de fato uma socialização que orbita em volta de drogas? Quais outras atividades constitui esse tipo de socialização?

domingo, 13 de setembro de 2015

Sanma no aji - A rotina tem seu encanto (1962). Análise dos papéis de gênero e uma definição preliminar de patriarcado

Então, ontem assisti a esse filme que é tão singelo quanto sincero. A rotina tem seu encanto. O objeto do filme são os papéis domésticos dentro da família japonesa. É um estudo otimista da divisão das funções de marido (homem) e esposa (mulher).

Conta a história de Shuhei, um senhor viúvo, pai de um homem no início de um casamento e ainda sem filhos; uma bela e dedicada moça, Michiko, que além de trabalhar na firma de Shuzo, amigo do pai, é também gestora do lar, cuidando com zelo do velho pai e do irmão adolescente. Diretor de uma empresa, o nosso bem-sucedido senhor ouve constantemente de Shuzo, seu amigo de longa data, que Michiko, em seus 24 anos, está na melhor idade para casar e arranjar um bom partido. Quem concorda com esta opinião é Horie, também viúvo e bem sucedido, mas que diferentemente do nosso protagonista já casou a filha há muito tempo, e agora vive bem com sua jovem esposa, contando com auxílio do famoso azulzinho para dar aquela levantada.


Michiko em seus afazeres domésticos aguarda a chegada do pai e irmão
Nas reuniões quase que diárias do viúvo com seus dois amigos em seu bar preferido, a conversa é regada a muito saquê e pregação de peças. Em uma destas ocasiões aparece a esposa de Horie, vestida de um longo quimono e meias, com cabelos presos em coque atrás da cabeça. Única vez em cena, esta jovem é muito bem educada com os companheiros de seu esposo, todavia não aceita o convite para sentar e beber com eles já que estava apenas de passagem: tinha ido fazer compras, e entrega ao marido suas "vitaminas". O homem então quebra o compromisso que tinha com os outros dois e segue para casa enfeitiçado pela ninfa que tem como esposa. 

Em outra reunião regada a álcool, em ocasião de homenagem de estudantes de faculdade ao mestre Calabaza, ficam Shuzo e o nosso protagonista encarregados de levar para casa o ancião, que de tanto saquê esqueceu até como andar. Chegando à casa do velho, deparam-se com o triste destino da filha: de beleza esgotada, sua vida é cuidar do pai viúvo, que não raramente chega bêbado e perde a delicadeza com as palavras. Este é o turning point do enredo, a partir do qual o Shuhei passa a considerar mais seriamente a proposta de casar a filha.

O velho Calabaza recebendo uma garrafa de Whisky
A história desenrola-se em diversos núcleos que correspondem mais ou menos às famílias: além do dilema de Shuhei e sua filha também são retratados de forma tanto crítica quanto cômica os conflitos e desentendimentos a respeito de orçamento doméstico e autoridade entre o casal formado pelo filho mais velho de Shuhei e sua esposa, numa relação própria dos recém-casados que estão começando a se ajeitar juntos.

O filme é otimista porque retrata a família como uma instituição que funciona: o pai respeita a filha, que tem poder de agência e manda o irmão mais novo ou o próprio pai fazerem suas coisas quando se sente desvalorizada ou abusada. O casamento é visto como uma cooperação entre homem e mulher, com funções bem definidas. Não há violência doméstica e adultério, nem tampouco prostituição. Yasujiro Ozu propõe um retrato da rotina das atividades do casal que deve funcionar como uma inspiração e um motivo norteador a homens e mulheres japoneses. 

E aqui vem a análise sociológica: o diretor acredita no casamento como uma instituição que produz bem-estar, e em sua linguagem cinematográfica aceita prerrogativas de comportamento feminino como positivas e necessárias  para que a rotina tenha de fato seu encanto, a saber:

  • a mulher quando se casa pode abdicar de atividades remuneradas em função da dedicação ao lar, que lhe foi instruída desde a infância e posta em prática nos diversos momentos de seu amadurecimento como mulher-esposa.
  • a mulher recebe as incumbências da gestão do lar como dever e responsabilidade. Com efeito, Michiko nega categoricamente o pedido do pai para que se case, porque, segundo ela, o pai e o irmão não conseguiriam realizar as atividades domésticas e se dariam muito mal se ficassem sozinhos;
Michiko ainda irritada diante da sugestão do pai, que em difícil decisão preferiu a solidão de sua viuvice ao remorso de impedir que a filha vivesse sua vida





















  • no lar as funções da mulher têm têm a ver com os serviços domésticos bem como a importante faculdade de servir como elo de comunicação entre famílias nucleares. Com efeito, quando Michiko ainda confusa pela sugestão de que deveria se casar foi logo desabafar com a cunhada, que posteriormente compartilhou algumas informações com o marido;
  • a mulher que não se casa durante a juventude torna-se solteirona, uma posição social desprivilegiada , que foi tão bem retratada na filha já gorda e feia do ancião Calabaza, que não casou a filha, beneficiando-se assim de sua companhia na solidão da viuvice;
  • a mulher pode literalmente dar bronca e impedir que o homem tome decisões que vão a seu contragosto quanto o assunto é orçamento doméstico, como mostrado de forma cômica e clara na personagem da cunhada, que falta puxar o orelha do seu marido para o impedir de gastar dinheiro de forma desnecessária em tacos de golfe. O desfecho: o homem desistiu dos tacos, mas em último momento sua esposa permitiu que ficasse com eles, contanto que ela mesma também pudesse gastar certa cifra em uma bolsa de pele;

A prestativa esposa de Shuzo, que com simpatia serve o jantar e participa da conversa a partir de outra mesa.
  • o âmbito de atividade da mulher é sempre a casa, mesmo que possa trabalhar e atravessar de trem a cidade para ir à casa de familiares ou sair com as amigas. Cena significativa é quando Shuhei vem à casa de seu filho mais velho conversar sobre o casamento de Michiko. À ocasião o jantar que o filho ia ter com a esposa no interior da casa é subtraído, e pai e filho dirigem-se sem a mulher a um restaurante para conversarem do assunto particular em questão;

  • no interior da casa, domínio da mulher, a ela cabe receber os convidados do marido, servi-lhes a comida, participar também da conversa mas sem se sentar à mesma messa, levantando-se prontamente para levar até a porta despedir-se dos convidados em nome da família.

Desta forma Yasujiro Ozu quer ao mesmo tempo reafirmar um ideal ótimo de rotina e também dizer que "em time que está ganhando não se mexe".  Não obstante a sinceridade e boa intenção, o filme para existir precisou fazer um recorte de realidade. Com efeito, não trata, por exemplo, do fato de a mulher em sua formação como esposa ficar alijada do estudo profundo em faculdade, que se realizado raramente garante a ela cargos de diretoria e liderança. Em uma formação que privilegia a boa educação, a conversa, a hospitalidade, em suma, a gestão do lar sobre outras capacidades, o desenvolvimento de características voltadas à engenhosidade e tomada de decisão deixam de ser desenvolvidas. Assim espera-se da boa mulher que seja boa esposa, e não bem-sucedida noutros termos. 

E fica claro ainda que não cabe a nós simplesmente taxar o papel da mulher como de coadjuvante, dependente e submetida ao homem (isso entra na análise da desorganização familiar), mas sim de reconhecer a importância das atividades que desempenha na colaboração entre homem e mulher, e quando preciso verificar quais tarefas a emancipam e quais a colocam em posição subalterna.

O filme é sincero, e deixa claro: à mulher velha e cansada cujo trabalho doméstico não é valorizado no mercado não sobram pretendentes, já ao homem bem-sucedido e disposto dispõe de todo um mundo de rejuvenescimento representado por jovens mulheres e uma farmacologia que suporta os desejos sexuais masculinos.

sábado, 12 de setembro de 2015


Eu tirei esta foto. É uma foto de mim. É tão natural que eu a examine, escrutine, comente e critique. 

Quanto ao enquadramento: fica cortado o cotovelo. É um problema? Por certo deve haver recomendações sobre enquadramento do corpo humano em retratos. Vou pesquisar sobre isso. De qualquer forma, a pose pediu que o cotovelo fosse cortado.

No que diz respeito à regra dos terços: o bíceps está numa área privilegiada do quadro. E o olhar acompanha até o brinco, sutilmente realçado. Como se trata de um retrato acho que deixar o objeto centralizado é a melhor opção.

O plano de fundo está agradável. Nada que deturpe a atenção do olhar. O preto e branco funcionou muito bem pois retirou a atratividade dos objetos do quarto. Ainda assim, é possível reparar que o ambiente é íntimo: espelho, porta aberta, guarda-roupas, pôsteres. 

A posição da cabeça também inspira movimento. O olhar  direcionado à câmera, por um lado sem medo ou timidez, e por outro sem indulgência, mas com respeito. Talvez em outra composição tentar abaixar mais a cabeça, mais naturalidade. E o cabelo: por pouco não se fundiu ao fundo! O contraste deixou de existir porque ficou preto no preto!

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Gal Costa e sua interpretação de "Se você pensa"

Foi no dia de ontem que ouvi pela primeira vez o álbum de 1969 da Gal Costa. Fiquei emocionado pela forma como a mulher se impõe e pela coragem com que levanta sua voz aqui tão cheia de força, mas que noutros momentos do álbum encanta justamente pela doçura. Foi ainda na metade da performance, em seu libertário refrão acalentado pela quebradeira da bateria, que caiu a minha ficha: "trata-se de uma versão", "já conheço essa letra", "posso cantar como quem já é familiarizado". Diante desta verificação da vantagem de se ouvir esta música nacional, proveniente de uma cena de intertextualidade entre Tropicalismo e Jovem Guarda, eu, que já estava lacrimejando, chorei então ainda mais. Bravo Gal Costa!

Pensamentos sobre o filme Bicho de Sete Cabeças

Hoje eu quis assistir um filme para relaxar no final de tarde. Quando me dei conta estava com um balde de pipocas no colo, olhando confusamente para a tela do monitor enquanto assistia An autumn afternoon (Samna no aji), traduzido como A rotina tem seu encanto, filme japonês com legendas em inglês mal sincronizadas. O filme provavelmente tem seu encanto, assim como a rotina, mas naquele senti que às vezes me alieno muito facilmente e tenho excessos de fantasia. Decidi então assistir um filme sobre a realidade brasileira. Boa pedida. Uma grande realização pessoal.

Acessa o Netflix, digita "brasileiros", clica em "filmes brasileiros" e escolhe o bem cotado "Bicho de Sete Cabeças", filme definitivamente polêmico.

Tenho a impressão que a produção do filme, sua direção e fotografia, buscaram emular um Trainspotting ou Requiem for a dream à brasileira. De início já causa estranhamento a cena em que o jovem desviante, skatista e pixador, interpretado por Rodrigo Santoro está fumando maconha na companhia de seus amigos em um cômodo abandonado e escuro, que mais parece um mocó. Por que subitamente os adolescentes passam a agir agressivamente após tragar do cigarro? Os jovens não aparecem em cena divertindo-se ou rindo, mas sim com semblantes mal-encarados e repletos de ódio. O líder do grupo em que o adolescente tem acesso à droga é retratado como um vilão que tem poder sobre seus colegas. O argumento do filme dá a entender que esse comportamento anti-social seria efeito da maconha, o que, de um ponto de vista objetivo, é uma asserção não verdadeira.

O que dizer da cena em que nosso jovem-sob-efeito-de-maconha fica incapaz de interagir com o pai durante uma conversa dentro do carro? Por um lado, os efeitos farmacológicos da maconha podem causar esta dificuldade de concatenar os pensamentos, tão bem caracterizada na cena. Mas o que não fica evidente no filme é que esta sensação de "estar travado" é corriqueira e definitivamente não equivale a alucinações. Na vida real o que acontece após dois stoners se verem por segundos travados numa palavra ou assunto é uma gargalhada oriunda do entendimento entre pessoas.

O segundo ato começa quando o pai encontra um baseado na jaqueta do menino. O pai já vinha incomodado com as amizades que o filho mantinha, é  além disso o criticava por estar desempregado. A proximidade entre os dois não existe. Também é delicada a relação entre mãe e filho, mas à esposa cabe a nobre e paciente tarefa de fazer com que os dois homens cheguem próximos de uma comunicação. A direção e sentido das decisões é prerrogativa do esposo. 

Aqui a sequência é trágica: o pai decide internar o filho a contragosto numa clínica de reabilitação. É a história real na qual o filme foi baseado: a história de Austregésilo Carrano Bueno, que 1974 foi internado em hospital psiquiátrico para que lhe fosse arrancado o "vício", e lá dentro teve sua condição seriamente agravada. O filme é bem sucedido ao mostrar de forma impressionante  o estigma que os familiares direcionam ao usuário. À família humilde falta informação. Em 1974, mais que hoje, os mitos sobre a maconha eram reproduzidos por pessoa equivocadas, elas mesmas que nunca tiveram informação confiável verdadeira.E o retrato feito pelo filme das inseguranças familiares quanto ao cotidiano do jovem fora de casa é bem fiel ao contexto de periferia, onde inclusive na escola a droga rola solta.

Faço um parênteses para falar de Rogério, personagem que se aproxima do protagonista quando internado no sanitário. Diz que foi usuário da droga injetável heroína, e que "se dava picos". Pergunto se foi ou é comum a heroína em realidades brasileiras. Como esta famosa droga utilizada nos Estados Unidos e Europa chega às periferias do sudeste? Me deixou com a impressão de que o roteiro foi imprudente.


O ponto forte do filme é conseguir mostrar como os sanatórios são instituições despreparadas para lidar com os supostos "loucos". Neles os internos são desconsiderados pelos funcionários irredutíveis aos quais falta aptidão para o trabalho. O interno sofre abusos e, no final das contas, enlouquece de fato é quando passa a conviver com outros "loucos" e a ser tratado como um deles, num regime de tranquilizantes e sessões de choque. Com cenas de qualidade artística aliadas a uma trilha sonora efetiva se consegue produzir uma atmosfera de opressão e desespero que afeta e causa estranhamento tanto no protagonista como em quem assiste ao filme.

Não posso evitar de sentir  desconforto por ver tanta desgraça estar associada ao fumo, e de forma tão superficialmente trabalhada como foi no filme. Contou-se a história real de Austregésilo, mas como uma trajetória modelo, e não como um documento para problematização. Tanto a maconha quanto cada gole de álcool tomado pelo protagonista tem o peso da dor e da culpa. O que dizer do médico-psiquiatra que se dopa com calmantes e tem fantásticas alucinações?  A ideia é que a droga é imoral, e fim de ponto.

Tenho a opinião de que a abordagem sincera de uma biografia não deveria ser conjugada a filtros azulados e escuros, granulação e outros recursos de fotografia tão destoantes da realidade.

 E a maconha? Vicia? Deixa violento? É porta de entrada? Desarticula famílias? Tudo isso ficou no ar.

Súplica

-  Quedei-me aprisionado por sua beleza. Não há como evitar. Reconheço que você não escolheu nascer com estes delicados traços; que talvez em momentos de insegurança desgoste do lado esquerdo do nariz ou do centro de seu queixo; mas peço que se coloque em meu lugar e veja que também a mim foi negada a escolha: não posso deixar de admirar tão primorosa fisionomia. Permita que eu me liberte. Consinta que me ajoelhe parar beber da água fresca de sua juventude. Queime minha pele com o fogo escarlate que provém de sua carne.  Permita, menina, permita que com meus beijos em tenra pele eu projete seu espírito à plenitude alquímica das almas.

-  Mas, homem, não se queira iludir. Não fomos apresentados. Você adentrou nem um passo sequer na imensidão do meu eu. Não lhe nego minha curiosidade, certamente também sua aparência não chega a assustar.  Mas o que quer desta total estrangeira cujo caráter, hábitos, convicções e inseguranças você desconhece totalmente? Os corpos entendem-se apenas quando as almas trocam palavras e absorvem uma a outra. Não sou uma mera bruaca a quem elege com luxúria para suas profanas insinuações. Esqueça de mim.

- Se permite que eu me justifique...

Ela consentiu com a cabeça.
Ele continuou.

- Meu interesse último já foi anunciado. Agora peço que converse comigo, que derrame sobre mim todas os soluços entalados e que me deixe consolá-la com toda minha vontade, até que de contentamento brote a brilhar a serena luz do espírito em seu olhar. Vamos, diga-me, vem comigo? Prefere Rei do Mate ou Starbucks?

terça-feira, 8 de setembro de 2015

T2 - It'll all work out in boomland: completando com o passado e entendendo a raiz do meu pensamento no cotidiano: tudo deve estar ótimo, não se açoite.


Riffs de guitarra, sessões, momentos e trechos de infinitésimos segundos que no conjunto da composição desencadeiam sentimentos de entusiasmo a partir de memórias íntimas. Instantes de mais pura beleza expressa pelo som, mas que também não seria realizada não fossem minhas memórias da época em que descobri a existência desse álbum. É como se nesses instantes de êxtase quase que eu pudesse sentir com a mente o sabor e a textura das imagens que me vêm à cabeça, revivendo-as. Imagens da época em que eu passava meu tempo stalkeando a Lene, imerso em paisagens escandinavas de beleza fantástica. Essa entidade cuja figura de idealização é uma musa que excede a pessoa: uma inspiração de beleza feminina, fresca e profunda. Um ideal de dedicação e realização artística.

Me leva para quando descobri o rock progressivo e a fantasia sonora - que me arrebatou mais que a literatura e proporcionou a satisfação dos sentidos e o hedonismo musical. Uma ocasião a partir da qual se instauraram momentos de "antes" e "depois" em minha trajetória: começa com o Daniel na ETESP, Jethro Tull, Rush, Yes, fórum Sound Chaser e suas reviews totalmente excelentes, a saudosa comunidade Progvacas no Orkut, da qual fiz parte e cujas discussões acompanhei fielmente mas no entanto sem comentar nem adicionar por medo de me expor. A semelhança com minha atitude em sala de aula na faculdade é assustadoramente severa.  Na época a minha realidade mental fazia-me clamar piedade, como agora clamo, ao estado de agonia que sempre experimento no presente. Mas, ora, agora eu me recordo destes momentos com saudosismo. E será assim no futuro com relação às salas de aula de Antropologia: a inquietude que sinto agora quanto às pressões por me comunicar com professores e expor meu ponto de vista em aula para não sucumbir será dissolvida em êxtase e saudosismo pelo meu eu-passado.

E no futuro então também vou me sentir no centro de mim mesmo quando fazer lá o que faço aqui, quando me der conta daquilo que gosto de ter: momentos íntimos e sinceros de curiosidade intelectual e estímulo dos sentidos. Estou imediatamente agora diante desta mesma fonte de contentamento, no oásis da indulgência. É precisamente o que T2 me faz avivar nesta tarde de chuva e quietude. Pergunto-me no entanto por que precisa o tempo passar para remover das minhas lembranças todos os espinhos. Por que você, Leonardo, simplesmente não completa consigo e adquire entusiasmo no presente mesmo?

E a It'll all work out in boomland eu só posso atribuir algumas palavras que marquem sua beleza genuína: composições impetuosas, dotadas de alegria que se destaca do tempo. Eternizadas em gravações, as faixas do álbum agora têm existência própria à medida que já entre 1970 e 1971 os membros da banda separaram-se. Considero esta qualidade como essencial à arte. Um trio de músicos virtuosos que quando tocando as composições do líder, baterista e vocalista Peter Dunton simplesmente gera entusiasmo puro. Além disso não posso mais. Devo aceitar que música, bem como sensações e sentimentos por ela despertados não podem ser traduzidos em palavras. Devo aceitar os mistérios da 4ª dimensão, onde o que acontece é impossível de ser descrito, podendo apenas ser experimentado. A apreciação consiste, isso sim, em devotar a atenção do espírito a esta expressão dos sentimentos através de tom e ritmo, que é a música.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Definição de "significado", e validação do interesse por moradores de rua, mais desafios e necessidade de auto-confiança

O que dizer da breve conversa que tive hoje no metro ao voltar de um final de semana terapêutico com a Isabela? Um senhor "mais velho que andar para trás" - 79 anos - sentou-se ao meu lado no metro e, pelo fato de eu estar com meu diário e caneta em mãos, começou assim a conversa:

- Você é engenheiro civil? Parece engenheiro civil.

Depois de alguns segundos de prosa surpresa de metro, falou que "você está aí,quieto, mas tá de olho no que acontece no ambiente", que "você calcula as palavras, não fala por besteira", que posso "ser professor de crianças evangélicas" e "tocar órgão, música romântica".

Sua energia, gestos e jeito de falar não denunciavam, nem se longe, a idade que tinha. Disse que não gostava de ficar ao lado dos velhos porque quando se fala "carona de caminhão" eles entendem "Cosme e Damião". Bem-humorado, simpático e misterioso. Qual o significado deste episódio?

Ele não falou nada de que discordo. Pelo contrário, localizou meu incipiente interesse em atividades pedagógicas e o recente marco de valorização dos ensinamentos arcanos e práticas mágicas em minha trajetória.

Estas palavras provavelmente regidas e manipuladas em meu favor pelo Acaso me encheram de gratidão. Abençoaram-me com uma boa dose de satisfação e auto-confiança que esperançosamente irá me motivar por essas semanas.

----------

Paro agora para ponderar o significado que têm estas conversas-surpresa em minha personalidade. Seja o senhor acima, o segurança do shopping, o mendigo totalmente amigável na São Joaquim ou Grande caiçara florianopolitano sem-teto, que vivia "só de comer peixe, farinha e água", todos me proporcionam o meu tipo de conversa favorito: as espontâneas, educadas, sinceras e, notadamente, com pessoas mais velhas, e que puxam o assunto em dianteira. Isto é significante. Se por um lado evidencia minha dificuldade em disparar o início da conversa, por outro deixa claro o valor que atribuo à experiência da alteridade. O trekking, neste sentido, foi o contraponto da civilização. De qualquer forma, fica verificado meu interesse por pessoas que se apresentam como misteriosas, estudiosas, "vividas" ou que tenham, assim como eu, algo a dizer. Tornam-se inspiradoras à medida que sinto poder aprender algo com elas. Assim valido meu interesse íntimo na pesquisa etnográfica com moradores de rua. No entanto me falta: aprender sobre populações de moradores de rua e ganhar confiança para o contato, bem como justificar meu interesse científico no morador de rua.

Continuação da descrição do blog - Sobre Irracionalismo, o Princípio e Upanishads: Experiência mística da união com Deus

Vairochana - natureza búdica absoluta, o senhor da Verdade
A vida, como o oposto ao nada, é um vazio de significado. Humanos que somos, capazes de linguagem, performance e inspiração, bem como realizadores de trabalho social, criamos realidades cosmológicas e ontológicas por um lado, e culturais e materiais por outro. A função deste blog é carimbar meus traços de existência neste tempo útil que tenho na Terra, realizado por uma alma (consciência/ego + inconsciente) realizada em um corpo e por intermédio dele.

Reconheço que embora sem nenhum significado intrínseco, a vida e a existência, no entanto, são “a parte de dentro de tudo o que existe”, e sendo assim, devem ser entendidas em contraponto ao não-Universo, à não-existência, à morte. Mas a “parte de fora de tudo o que existe” também é real. Eu indago, portanto, o que é aquilo que “se move, mas não se move” e aquilo que “está longe, mas também está perto?” Percebe-se um jogo de significados, em que o resultado do sorteio são as duas faces da moeda ao mesmo tempo, em um paradoxo. Mas a confusão não é à toa: busca-se confundir a cognição ao indicar a existência do que é transcendente à percepção realizada “pela via natural, em oposição a vias mágicas” (Ajdudwickz).

Refere-se à vida após a morte? Fala sobre reencarnação? Ressalta a existência dos fenômenos espirituais? Não somente. Talvez funde a necessidade de uma metafísica que leve em conta o conhecimento que não tenha como fonte apenas a realidade particular imposta pelo racionalismo, remetendo-se ao que é incomunicável intersubjetivamente. Asserções obtidas por contato com o “divino” ou a “verdade”, que podem ser percebidas pelos sentidos quando num estado muito particular: o de transe.

Deve-se considerar, enfim, Deus. Aquilo que não é visível. A Luz. Esta charada do Upanishad remete à existência daquilo que não se encontra personificado. O Princípio. O que antecede o cosmos. Se pensarmos na antropomorfização desta essência: O criador, por assim dizer.