quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Pensamentos sobre o filme Bicho de Sete Cabeças

Hoje eu quis assistir um filme para relaxar no final de tarde. Quando me dei conta estava com um balde de pipocas no colo, olhando confusamente para a tela do monitor enquanto assistia An autumn afternoon (Samna no aji), traduzido como A rotina tem seu encanto, filme japonês com legendas em inglês mal sincronizadas. O filme provavelmente tem seu encanto, assim como a rotina, mas naquele senti que às vezes me alieno muito facilmente e tenho excessos de fantasia. Decidi então assistir um filme sobre a realidade brasileira. Boa pedida. Uma grande realização pessoal.

Acessa o Netflix, digita "brasileiros", clica em "filmes brasileiros" e escolhe o bem cotado "Bicho de Sete Cabeças", filme definitivamente polêmico.

Tenho a impressão que a produção do filme, sua direção e fotografia, buscaram emular um Trainspotting ou Requiem for a dream à brasileira. De início já causa estranhamento a cena em que o jovem desviante, skatista e pixador, interpretado por Rodrigo Santoro está fumando maconha na companhia de seus amigos em um cômodo abandonado e escuro, que mais parece um mocó. Por que subitamente os adolescentes passam a agir agressivamente após tragar do cigarro? Os jovens não aparecem em cena divertindo-se ou rindo, mas sim com semblantes mal-encarados e repletos de ódio. O líder do grupo em que o adolescente tem acesso à droga é retratado como um vilão que tem poder sobre seus colegas. O argumento do filme dá a entender que esse comportamento anti-social seria efeito da maconha, o que, de um ponto de vista objetivo, é uma asserção não verdadeira.

O que dizer da cena em que nosso jovem-sob-efeito-de-maconha fica incapaz de interagir com o pai durante uma conversa dentro do carro? Por um lado, os efeitos farmacológicos da maconha podem causar esta dificuldade de concatenar os pensamentos, tão bem caracterizada na cena. Mas o que não fica evidente no filme é que esta sensação de "estar travado" é corriqueira e definitivamente não equivale a alucinações. Na vida real o que acontece após dois stoners se verem por segundos travados numa palavra ou assunto é uma gargalhada oriunda do entendimento entre pessoas.

O segundo ato começa quando o pai encontra um baseado na jaqueta do menino. O pai já vinha incomodado com as amizades que o filho mantinha, é  além disso o criticava por estar desempregado. A proximidade entre os dois não existe. Também é delicada a relação entre mãe e filho, mas à esposa cabe a nobre e paciente tarefa de fazer com que os dois homens cheguem próximos de uma comunicação. A direção e sentido das decisões é prerrogativa do esposo. 

Aqui a sequência é trágica: o pai decide internar o filho a contragosto numa clínica de reabilitação. É a história real na qual o filme foi baseado: a história de Austregésilo Carrano Bueno, que 1974 foi internado em hospital psiquiátrico para que lhe fosse arrancado o "vício", e lá dentro teve sua condição seriamente agravada. O filme é bem sucedido ao mostrar de forma impressionante  o estigma que os familiares direcionam ao usuário. À família humilde falta informação. Em 1974, mais que hoje, os mitos sobre a maconha eram reproduzidos por pessoa equivocadas, elas mesmas que nunca tiveram informação confiável verdadeira.E o retrato feito pelo filme das inseguranças familiares quanto ao cotidiano do jovem fora de casa é bem fiel ao contexto de periferia, onde inclusive na escola a droga rola solta.

Faço um parênteses para falar de Rogério, personagem que se aproxima do protagonista quando internado no sanitário. Diz que foi usuário da droga injetável heroína, e que "se dava picos". Pergunto se foi ou é comum a heroína em realidades brasileiras. Como esta famosa droga utilizada nos Estados Unidos e Europa chega às periferias do sudeste? Me deixou com a impressão de que o roteiro foi imprudente.


O ponto forte do filme é conseguir mostrar como os sanatórios são instituições despreparadas para lidar com os supostos "loucos". Neles os internos são desconsiderados pelos funcionários irredutíveis aos quais falta aptidão para o trabalho. O interno sofre abusos e, no final das contas, enlouquece de fato é quando passa a conviver com outros "loucos" e a ser tratado como um deles, num regime de tranquilizantes e sessões de choque. Com cenas de qualidade artística aliadas a uma trilha sonora efetiva se consegue produzir uma atmosfera de opressão e desespero que afeta e causa estranhamento tanto no protagonista como em quem assiste ao filme.

Não posso evitar de sentir  desconforto por ver tanta desgraça estar associada ao fumo, e de forma tão superficialmente trabalhada como foi no filme. Contou-se a história real de Austregésilo, mas como uma trajetória modelo, e não como um documento para problematização. Tanto a maconha quanto cada gole de álcool tomado pelo protagonista tem o peso da dor e da culpa. O que dizer do médico-psiquiatra que se dopa com calmantes e tem fantásticas alucinações?  A ideia é que a droga é imoral, e fim de ponto.

Tenho a opinião de que a abordagem sincera de uma biografia não deveria ser conjugada a filtros azulados e escuros, granulação e outros recursos de fotografia tão destoantes da realidade.

 E a maconha? Vicia? Deixa violento? É porta de entrada? Desarticula famílias? Tudo isso ficou no ar.

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