Hoje eu quis assistir um filme para relaxar no final de tarde. Quando me dei conta estava com um balde de pipocas no colo, olhando confusamente para a tela do monitor enquanto assistia An autumn afternoon (Samna no aji), traduzido como A rotina tem seu encanto, filme japonês com legendas em inglês mal sincronizadas. O filme provavelmente tem seu encanto, assim como a rotina, mas naquele senti que às vezes me alieno muito facilmente e tenho excessos de fantasia. Decidi então assistir um filme sobre a realidade brasileira. Boa pedida. Uma grande realização pessoal.
Acessa o Netflix, digita "brasileiros", clica em "filmes brasileiros" e escolhe o bem cotado "Bicho de Sete Cabeças", filme definitivamente polêmico.
Tenho a impressão que a produção do filme, sua direção e fotografia, buscaram emular um Trainspotting ou Requiem for a dream à brasileira. De início já causa estranhamento a cena em que o jovem desviante, skatista e pixador, interpretado por Rodrigo Santoro está fumando maconha na companhia de seus amigos em um cômodo abandonado e escuro, que mais parece um mocó. Por que subitamente os adolescentes passam a agir agressivamente após tragar do cigarro? Os jovens não aparecem em cena divertindo-se ou rindo, mas sim com semblantes mal-encarados e repletos de ódio. O líder do grupo em que o adolescente tem acesso à droga é retratado como um vilão que tem poder sobre seus colegas. O argumento do filme dá a entender que esse comportamento anti-social seria efeito da maconha, o que, de um ponto de vista objetivo, é uma asserção não verdadeira.
O que dizer da cena em que nosso jovem-sob-efeito-de-maconha fica incapaz de interagir com o pai durante uma conversa dentro do carro? Por um lado, os efeitos farmacológicos da maconha podem causar esta dificuldade de concatenar os pensamentos, tão bem caracterizada na cena. Mas o que não fica evidente no filme é que esta sensação de "estar travado" é corriqueira e definitivamente não equivale a alucinações. Na vida real o que acontece após dois stoners se verem por segundos travados numa palavra ou assunto é uma gargalhada oriunda do entendimento entre pessoas.
O segundo ato começa quando o pai encontra um baseado na jaqueta do menino. O pai já vinha incomodado com as amizades que o filho mantinha, é além disso o criticava por estar desempregado. A proximidade entre os dois não existe. Também é delicada a relação entre mãe e filho, mas à esposa cabe a nobre e paciente tarefa de fazer com que os dois homens cheguem próximos de uma comunicação. A direção e sentido das decisões é prerrogativa do esposo.
Aqui a sequência é trágica: o pai decide internar o filho a contragosto numa clínica de reabilitação. É a história real na qual o filme foi baseado: a história de Austregésilo Carrano Bueno, que 1974 foi internado em hospital psiquiátrico para que lhe fosse arrancado o "vício", e lá dentro teve sua condição seriamente agravada. O filme é bem sucedido ao mostrar de forma impressionante o estigma que os familiares direcionam ao usuário. À família humilde falta informação. Em 1974, mais que hoje, os mitos sobre a maconha eram reproduzidos por pessoa equivocadas, elas mesmas que nunca tiveram informação confiável verdadeira.E o retrato feito pelo filme das inseguranças familiares quanto ao cotidiano do jovem fora de casa é bem fiel ao contexto de periferia, onde inclusive na escola a droga rola solta.
Faço um parênteses para falar de Rogério, personagem que se aproxima do protagonista quando internado no sanitário. Diz que foi usuário da droga injetável heroína, e que "se dava picos". Pergunto se foi ou é comum a heroína em realidades brasileiras. Como esta famosa droga utilizada nos Estados Unidos e Europa chega às periferias do sudeste? Me deixou com a impressão de que o roteiro foi imprudente.
O ponto forte do filme é conseguir mostrar como os sanatórios são instituições despreparadas para lidar com os supostos "loucos". Neles os internos são desconsiderados pelos funcionários irredutíveis aos quais falta aptidão para o trabalho. O interno sofre abusos e, no final das contas, enlouquece de fato é quando passa a conviver com outros "loucos" e a ser tratado como um deles, num regime de tranquilizantes e sessões de choque. Com cenas de qualidade artística aliadas a uma trilha sonora efetiva se consegue produzir uma atmosfera de opressão e desespero que afeta e causa estranhamento tanto no protagonista como em quem assiste ao filme.
Não posso evitar de sentir desconforto por ver tanta desgraça estar associada ao fumo, e de forma tão superficialmente trabalhada como foi no filme. Contou-se a história real de Austregésilo, mas como uma trajetória modelo, e não como um documento para problematização. Tanto a maconha quanto cada gole de álcool tomado pelo protagonista tem o peso da dor e da culpa. O que dizer do médico-psiquiatra que se dopa com calmantes e tem fantásticas alucinações? A ideia é que a droga é imoral, e fim de ponto.
Tenho a opinião de que a abordagem sincera de uma biografia não deveria ser conjugada a filtros azulados e escuros, granulação e outros recursos de fotografia tão destoantes da realidade.
E a maconha? Vicia? Deixa violento? É porta de entrada? Desarticula famílias? Tudo isso ficou no ar.
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