quarta-feira, 4 de maio de 2016

alguns trechos das últimas páginas de "As Ondas", de Virginia Woolf

"- Sim, mas depois de algum tempo ocorre algo diferente. Pode ser que certa noite algo na aparência da sala, no arranjo das cadeiras, sugira isso. Parece confortável desabar num sofá de canto para olhar, escutar. Depois, dois vultos de costas para a janela aparecem diante dos ramos de uma árvore que se espraia. Com um toque de emoção, sentimos: "Ali há vultos sem feições, trajados de beleza." Na pausa que segue enquanto as vibrações se espalham, as jvoem com quem deveríamos estar conversando diz a si mesma: "Ele é um velho." Mas está enganada. Não é a idade; é que a gota tombou; outra gota. O tempo deu outra sacudidela na disposição das coisas. E saímos de rastros do arco de folhas pendentes, para um mundo mais amplo. A verdadeira ordem das coisas - esta é a nossa perpétua ilusão - aparece agora. Assim, por um momento, numa sala de estar, nossa vida se ajusta à majestosa marcha do dia através do céu."

"Se tenho de esperar, leio; se acordo na noite, apalpo a prateleira em busca de algum livro. Inchada, aumentando perpetuamente, existe em minha cabeça uma vasta acumulação de assuntos não registrados. Vez por outra abro um volume, pode ser Shakespeare, talvez uma anciã chamada Peck; e digo a mm mesmo, fumando um cigarro na cama: "Isto é Shakespeare. Aquilo é a Peck" - com uma segurança de reconhecimento e um choque de consciência interminavelmente deliciosos, embora não possam ser divulgados." 


"[...] e depois caíamos num daqueles silêncios que vez por outra se interrompem por raras palavras, como uma barbatana a erguer-se em desertos de silêncio; e depois a barbatana, o pensamento, recaía nas profundezas, espalhando em torno uma pequena ondulação de satisfação, de contentamento."

"Então parti, e Jinny, sem futuro nem especulação, mas respeitando o momento, com perfeita integridade chicoteou seu corpo, empoou o rosto (amei-a por isso) e acenou-me parada na porta, com a mão nos cabelos para que o vento não os despenteasse, gesto pelo qual a respeitei, como se confirmasse nossa resolução - não deixaríamos os lírios crescerem."

"[...] Enquanto ele escovava os fios de cabelo de meu casaco, tive dificuldade em assegurar-me de sua identidade, e depois, brandindo minha bengala, fui até o Strand, e evoquei, para servir-me de oponente, a imagem de Rhoda, sempre tão furtiva, sempre com medo nos olhos, sempre em busca de algum pilar no deserto, para descobrir aonde fora; ela se matara. 'Espere', disse eu, colocando em imaginação (assim nos ligamos aos nossos amigos) o braço no dela. 'Espere até esses ônibus passarem. Não atravesse a rua tão perigosamente. Estes homens são seus irmãos.' Persuadindo-a, eu também persuadia minha própria alma. Pois isto não é uma vida só; nem sempre sei se sou homem ou mulher, Bernard ou Neville, Louis, Susan, Jinny ou Rhoda - tão estranho o contato de um com o outro."

"[...] Pensei em como Louis haveria de subir aquelas escadas com seu terno elegante, bengala na mão e passo anguloso, atitude meio desligada. Com seu sotaque australiano ('Meu pai, banqueiro em Brisbane'), pensei que ele viria para essas cerimônias com mais respeito do que eu, que ouço há mil anos as mesmas cantigas de ninar. Sempre que entro, impressionam-me as rosas polidas; os bronzes lustrados; o oscilar e o salmodiar enquanto a voz de um menino lamenta-se em torno da cúpula como um pombo perdido e errante.  O repouso e a paz dos mortos me impressionam - guerreiros em descanso debaixo de seus antigos pendões. Depois zombo dos floreios e dos absurdos de alguma tumba cheia de volutas; e as trombetas e as vitórias e os brasões e a certeza tão sonoramente repetida da ressurreição, da vida eterna. Meu olho errante e inquisidor mostra-me então uma criança varada de terror; um aposentado arrastando os pés; ou as homenagens de exaustas balconistas carregando Deus sabe que dilema em seus pobres peitos magros, para buscarem consolo nesta hora do rush. Vagueio e olho e admiro-me, e por vezes, furtivamente, tento elevar-me no raio de luz da oração de alguma outra pessoa, até a cúpula, e para fora, mais além, para onde quer que estejam indo. Mas depois, como um pombo perdido e lamentoso, vejo-me falhar, esvoaçar, descer e pousar em alguma gárgula bizarra, um nariz corroído ou absurda pedra tumular, com humor, com espanto, e novamente observo os turistas passando com seus guias, enquanto a voz do menino se alça para a cúpula, e vez por outra o órgão se abandona a um momento de triunfo, elefantino. Como, indaguei, Louis nos acolheria a todos? Como nos haveria de confinar, de nos tornar um só, com sua tinta vermelha e sua pena de ponta muito fina? A voz enfraquecia na cúpula, chorosa.

"Começo agora a esquecer; começo a duvidar da fixidez das mesas, da realidade do aqui e agora, a bater de leve os nós dos dedos na beira de objetos aparentemente sólidos e a dizer: "Vocês são rijos?" Vi tantas coisas diferentes, fiz tantas frases diferentes. Perdi, no processo de comer e beber e esfregar meus olhos em superfícies, aquela concha tênue e dura que envolve a alma, que, na juventude, nos encerra - daí a ferocidade, os golpes dos implacáveis bicos da juventude. E agora indago: "Quem sou eu?" Sou todos eles? Sou um e distinto? Não sei. [...]"

"Mas não mais. Agora, esta noite, meu corpo se ergue, camada sobre camada, como algum templo cheio de frescor cujo assoalho é coberto de tapetes, e murmúrios se se erguem, e os altares estão em pé fumegando; mas mais acima, aqui na minha serena cabeça, chegam apenas finos sopros de melodia, ondas de incenso, enquanto o pombo perdido chora, as bandeiras tremulam sobre sepulturas e o ar escuro da meia-noite sacode árvores fora das janelas abertas. Quando baixo os olhos dessa transcendência, como são belas até as esfareladas relíquias do pão! Que simétricas espirais formam as cascas de pera - quão tênues, pintalgadas como os ovos de alguma ave marinha. [...]"

"Imensuravelmente receptivo, contendo tudo, fremindo de plenitude, mas claro e contido - assim é meu ser, agora que o desejo não mais o precipita para fora, para longe; agora que a curiosidade já não o pinta em mil cores. Jaz no fundo, sem marés, imune, agora que está morto, o homem a quem chamei 'Bernard'[...]"

"Assim, agora, assumindo o peso do mistério das coisas, eu poderia andar como um espião sem deixar este lugar, sem me mover de minha cadeira. Posso visitar as fímbrias remotas das terras ermas onde o selvagem senta-se junto à fogueira. O dia nasce; a jovem ergue até a fonte as joias aquosas de coração de fogo; o sol lança seus raios diretamente sobre a casa adormecida; as ondas aprofundam seu ritmo; jogam-se na praia; saltam negros seus respingos; deslizando, elas circundam o barco e o azevim do mar. Os pássaros cantam em coro; túneis fundos correm entre caules de flor; a casa alveja; aquele que dorme estende o corpo; gradualmente tudo se move. A luz inunda o aposento e faz recuar sombra atrás de sombra e elas ficam pendentes, inescrutáveis, dobradas em pregas. O que contém a sombra central? Algo? Nada? Não sei."

"[...] Choquei-me com a caixa de correspondência. Cambaleio de um lado para o outro. Ponho as mãos na cabeça. Meu chapéu caiu - deixei minha bengala cair. Fiz um papelão e todos os que passam riem-se de mim com razão"

"[...] Chame o garçom. Pague a conta. Temos de nos arrancar de nossas cadeiras. Temos de encontrar nossos casacos. Temos de ir. Temos, temos, temos - palavra detestável. [...]"

"[...] começo a perceber isto, aquilo e outras coisas mais. O relógio tiquetaqueia; a mulher espirra; o garçom chega - há um encontro gradual, uma reunião, uma aceleração, uma unificação. Ouça: um apito soa, rodas disparam, a porta range nos gonzos. Recupero a consciência da complexidade e da realidade e da luta, pelo que lhe agradeço. E com alguma compaixão, alguma inveja e muito boa vontade, pego sua mão e lhe desejo boa noite."

"[...] Agora, quero entoar minha canção de glória. Deus seja louvado pela solidão. Quero ficar sozinho. Quero pegar e jogar fora este véu do ser, esta nuvem que muda com o último sopro, dia e noite, e toda noite e todo dia. Enquanto estive sentado aqui, estive mudando. Observei o céu mudar. Vi nuvens cobrirem as estrelas, depois libertarem as estrelas, depois cobrirem as estrelas outra vez. Agora já não contemplo sua mutação. Agora ninguém me vê e já não mudo. Deus seja louvado pela solidão que removeu a pressão do olho, a solicitação do corpo, e toda necessidade de mentiras e de frases".

"[...] Qual a frase para a lua? E a frase para o amor? Com quem nome devemos designar a morte? Não sei.  Preciso de uma linguagem reduzida como a dos amantes, palavras de uma sílaba como a que as crianças falam quando entram no quarto e encontram sua mãe costurando e apanham um pedacinho de lã colorida, uma pluma ou uma tira de chintz. Preciso de um uivo; de um grito. [...] não preciso de palavras. De nada que seja exato. De nada que baixe com todos os seus pés no chão. De nenhuma daquelas ressonâncias e adoráveis ecos que se quebram e repicam de nervo em nervo em nossos peitos, formando música selvagem e frases falsas. Acabei com as frases."

"[...] Sim, esta é a eterna renovação, o incessante erguer-se e cair, e cair e erguer-se outra vez."

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