quarta-feira, 11 de maio de 2016

Diário de leitura: "Caminho de Pedras" de Rachel de Queiroz

"A primeira voz feminina a marcar presença no processo do romance moderno."

- Mas é muito justo que a gente deseje boas mulheres! Por que não? É um dos privilégios do burguês, as mulheres; tomam todas, as melhores, bem tratadas, bem cheirosas. Para nós é o rebotalho... E o Paulino tem razão: queremos ter e ainda havemos de ter boas mulheres!

-Mas você fala de mulher como de uma presa de guerra - atalhou Filipe. - As mulheres, e as melhores delas, virão para nós, naturalmente. Mas, não assim como você quer, como uma posta de carne arrancada da goela do burguês. E sim por elas mesmas, porque quererão, porque se nós desejamos mulheres, elas também desejam homens e nesse tempo nós é que seremos homens.

Ainda vermelho, ainda mudo de raiva, Paulino balançava a cabeça, apoiando, sentindo-se justificado. Roberto concordou:

- Tem que ser assim. Mas você vê, é tão difícil eliminar os instintos da rapinagem, de avança que, mesmo nós, ainda sentimos diante de mulher...

- Mas é fome, a desgraçada fome rugindo! - gritou Nascimento. - Nós vivemos recalcados, esfomeados. Olhem, essas moças todas passeando: querem casar, mas não com um de nós; e ficam assim, cada uma na sua estrela, esperando um noivo. E nós nunca poderemos ser os noivos! E vamos cavar aí, sabe Deus que misérias...

E apontava os grupos de moças, histérico:

-Olhem, é tudo donzela, tudo é virgem! Muitas vão murchando, secando, sempre donzelas, sempre virgens!... E a gente tem que ir em grupo, para a Rua do Chafariz... Não é uma injustiça?

-Injustiça também para elas, que têm direito de viver e acabam ficando logradas. Mas você tem um modo de reclamar que parece que é só o seu direito que sofre. Quem ouve o que você diz, tem a impressão de que a justiça está apenas em haver mulheres para o seu prazer.[...]

-Meninos, vamos pensar em outra coisa, falar em política. Senão, daqui a pouco estamos todos aí por esses becos, gastando os derradeiros vinténs...

Não queria pensar nas conversas dos outros. Antes queria ver-se livre deles e pensar em si mesmo - pensar em alguma mulher: vontade, por exemplo, de recordar a conversa do café, com Noemi. Esquecer as coisas sérias que poderia haver a separá-los: o marido, o filhinho que tinha dor de ouvido, o amor dela pelos dois, os deveres. Lembrar apenas o que um homem qualquer pode guardar de uma mulher moça que lhe passou pelo caminho: a risada clara, os seus dentes brancos, o brilho alegre dos olhos inteligentes e aquele cabelo macio e cheiroso que a todo instante ela empurrava, impaciente, para trás das orelhas. Vontade de conversar com ela, agora; de vê-la ali, tomando café com os outros, segurando a xícara no ar, sem beber, como era do seu jeito, sorrindo. Dizer-lhe coisas maliciosas sobre os outros, para vê-la sorrir mais, sorrir como uma menina alegre. Falar-lhe baixo, senti-la próxima e amiga.

João Jaques, nesse momento, bateu-lhe no ombro: [...]

Roberto o seguia naquele momento de alma aberta, num impulso real de amizade, nessa serena confiança com dois que homens de coração limpo se dão as mãos e caminham juntos, como irmãos.

[...]

-Conversa. Não me importo com isso. Não quero saber mais de nada. E você só se mete nessa bagunça porque eu não mando na senhora.

-Felizmente!

-É livre! Pois eu é que não sou mais trouxa. E, por favor, não me converse mais nesses assuntos. Faça o que quiser, mas me deixe.

[...]

-E eu já disse: é melhor não falar mais nisso. Você se governa, faça como achar bom. E por mim, me deixe em paz.

[...]

-Pois eu acho isso tudo histerismo. E improdutivo. O que eles combatem na gente, o que os choca, é o espírito que a gente adquiriu na leitura, no meio onde vivemos, a mentalidades que fomos formando desde meninos e que o impulso sentimental que nos arrastou...

Filipe retificou, imediatamente:

- O impulso intelectual...

-...Pois seja, intelectual...Que o impulso intelectual que nos levou à revolução não pôde controlar inda. E isso não vai embora com a roupa...

[...]

Tinha sono, e ao tirar os sapatos ia lembrando a conversa de Roberto, aquilo do impulso sentimental, do enternecimento. Por que é que os homens se enternecem? Sua mãe, por exemplo, não se enternecia nunca. O toucinho era fino como papel, a farinha sem coculo, não saía um tostão fiado.

Mas quando ele era pequeno, ela lhe beijava os pés e chamava de "meu filhinho". Dizia ela agora que "ter pena é luxo de rico"... Ou luxo de doido...

Sim - por que negar a si mesmo? - não fora a fria lógica de quem estuda que o levara àquelas caminhos. Foi ternura, foi desgosto, foi o impulso sentimental - que eles agora desprezavam tanto. O "luxo de doido" de que falava sua mãe...

[...] Esquisito, o amor. Parece uma luta, a gente parece inimigos. Vontade de possuir, de mandar, de dominar. Desconfiança. Fiscalizando, esmiuçando nuanças de voz, entonações, olhares. Tudo fica intoxicado, doentio. Entre Roberto e ela já não havia mais hiatos de paz, de amizade, de camaradagem serena. Foi-se embora isso tudo, assim que se disseram as primeiras palavras de amor. Hoje era só aquela tensão, aquela necessidade recíproca e angustiosa de se verem, aquela força bruta que a atirava para os braços dele com os lábios trêmulos e o coração quase parando.

[...]

E um imenso cansaço de falar tomou-o todo, um desejo imperioso de repouso e de amor.

Ela não se rendia, nos seus olhos brilhava um fogo inimigo, havia palavras de protesto, de ofensa, na boca cujos dentes cerrados mordiam os beiços com força. Evadia-se dele, era claro, a alma dela corria toda e abertamente para o outro. Mas o corpo ainda estava ali, o corpo moreno, de carnes duras, perfumadas, cujo mistério não se perdera ainda, passados embora tantos anos. Corpo de mulher, sozinho e meio nu, na intimidade do quarto.

E por que se agarrou àquela corpo, se a alma da mulher era inimiga e fugitiva? Talvez porque era só o que dela lhe restava. Só o que ainda tinha da companheira, aquele corpo que a princípio se debateu com força em seus braços, aos poucos cedeu ao seu desesperado esforço de renovar, na intensidade da sensação comum, o contato das almas que não queriam mais se entender uma com a outra.

Mas, passado o cansaço do amor, afastaram-se um do outro, envergonhados e estranhos, mais estranhos do que antes, do que nunca.

Ela ainda disse, quase a medo, com pudor da alusão àquilo que era melhor esquecer, hoje que eram quase como desconhecidos:

-Você está vendo que até isso é inútil?

[...]

Os homens dão valor demais ao amor. E principalmente a uma mulher. Por que ir embora, ficar infeliz? Por que não abrir mão daquela mulher, simplesmente, sem tragédia, procurar reconstituir a vida com outra qualquer? Por que não perdoar, não continuar amigo? Não, só porque a mulher gostou de outro, acontecia logo um irremediável.

Tolice, João Jaques. Não fui culpada. Não tive intenção de lhe envergonhar nem de lhe rebaixar. Tenho muita pena, uma pena horrível, que estraga tudo. E saudade. [...] Saudade, João Jaques.


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